Tatiana.Junger 22/05/2021
história que não virou História
Uma ficção que, atravessando os tempos desde 1647 até 1977, conta a história do Brasil - "história", porque se deu, e sabemos que se deu, por verossimilhança -, apagada pelo discurso oficial. Uma história de dor e sacrifício, que só não é um martírio para ler porque a narrativa oscila entre a retratação seca do terrível com a ironia, o sarcasmo, o fantástico e o espiritual, complementados pela construção de personagens marcantes, como Perilo Ambrósio, Amleto Ferreira-"Dutton", Nego Leléu, Maria da Fé e Patrício Macário.
Fugindo aos fatos tidos por notórios da nossa História, suas motivações e fundamentos, Viva o povo brasileiro tira o véu do "adequado" e do "bonito", põe o dedo na ferida, critica a elite brasileira pela sua hipocrisia e mediocridade, critica instituições (o governo, a Justiça, o Exército, etc) e sua responsividade à verdadeira ideia de democracia.
Nesse ensejo, a experiência de leitura baralha sentimentos de orgulho com sentimentos de vergonha da brasilidade. Afinal, a brasilidade não é só a resiliência do dominado, mas a frieza do dominador. São todos brasileiros, inobstante o empenho do dominador em esconder isso...
Mas no meio de tantas denúncias das "coisas como elas são", João Ubaldo Ribeiro insere na trama um elemento importante, misterioso, enigmático: uma canastra cheia de segredos da Irmandade da Casa da Farinha, segredos do povo, que passou por todo esse período perdendo bens, família, dignidade, sangue e até mesmo a vida, mas não perdeu a esperança, porque se alimenta do Espírito do Homem, que persegue incondicionalmente o Bem.
E a metáfora da canastra é brilhante, porque ela está lá, trancada, não expressa seus segredos, mas os prova presentes - e é o mesmo que a esperança do povo brasileiro: mesmo com nenhuma prova de que algum esforço compensa, mesmo remando contra a maré, mesmo após algumas "reviravoltas políticas", "revoluções" e supostas mudanças que nada de fato modificam, a esperança subsiste. A canastra explica o que nada mais explica: a esperança que subsiste.
"Viva o povo brasileiro" é uma saudação - e uma saudação serve para identificação dos pares. "Viva o povo brasileiro" é, portanto, uma tentativa de comunicar que existe alguém que protege a canastra, que alimenta a esperança e que, independentemente dos percalços, seguirá saudando "Viva o povo brasileiro"! Viva nós! Cabe a nós, leitores, reconhecer a Irmandade da Casa da Farinha, dar seguimento à sua causa e saudar de volta: Viva o povo brasileiro! Viva nós!