Lucas 26/01/2022
O "brasileirismo" na literatura: Quando um livro esbofeteia e afaga, condena e ensina
O que é um povo? Certamente, parte fundamental de determinada cultura, de determinada nação, mas o que ele é em seu âmago? Como um povo se forma? Através de uma cultura e/ou língua específica? Ou ele resulta da existência contínua de um grupo de pessoas que compartilham estas e muitas outras similaridades? E quando se pensa em "povo brasileiro", estes questionamentos ganham ainda mais força em nosso íntimo: por sermos brasileiros, sentimos que deveríamos saber responder isso, mas a pluralidade da nossa cultura, a extensão continental do nosso território e outras variáveis trazem a esta tarefa um grau considerável de complexidade.
O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) oferece uma perspectiva eficaz para o entendimento desta complexidade positiva através de Viva o Povo Brasileiro, lançado em 1984 e um dos melhores livros brasileiros de todos os tempos.
Tal pecha pode ser ousada, mas o futuro leitor concordará com tal rotulação. A obra é um "suco" de Brasil, puro, extravagante, vivo e com inevitáveis traços de amargor que se confundem com aquilo que entendemos de um cidadão brasileiro comum. Nenhuma outra obra ficcional conseguiu captar com tanta maestria a essência do que é o Brasil e, primordialmente, o povo que o compõe.
As sinopses mais comuns de Viva o Povo Brasileiro traduzem parte deste fascínio. No geral, elas falam de uma obra que se debruça por quatro séculos de existência do país, descrevendo a nação existente em cada um destes períodos. Tais informações traduzem sim essa grandeza literária e literal que o livro possui, mas precisam ser ressalvadas diante da estrutura do romance: dos vinte capítulos que o compõem, apenas três deles direcionam-se a um passado mais distante (século XVII) e ao "presente", os anos 30 e 70 do século XX. No restante, Viva o Povo Brasileiro se passa no século XIX, especialmente a partir do final dos anos 1820.
Isso não é demérito algum; afinal de contas, o século XIX foi, disparado, o recorte temporal em que mais mudanças estruturais ocorreram naquilo que hoje se entende por Brasil. Num período de menos de 70 anos, o Brasil saiu de status de colônia portuguesa para uma República Federativa, o que por si só é representativo da importância dos anos 1800. Dentro disso, houve um conflito internacional (a Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870), a Abolição da Escravatura (1888), algumas revoltas internas (como a Guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845 e Revolta de Canudos, entre 1896 e 1897) e vários outros momentos de cataclismo social com reflexos perenes.
É redundante detalhar ainda mais estes aspectos, mas eles precisam ser aqui lembrados para que o leitor tenha uma noção prévia de onde João Ubaldo Ribeiro estava se metendo ao montar uma narrativa ficcional que se desenrola em meio a tantos eventos impactantes. Porque antes de um livro que procura descrever o que é o povo brasileiro em todas as marcantes características que o compõem, é a ficção altamente criativa do autor quem o auxilia nessa tarefa de descrição.
Do mesmo modo que as sinopses de Viva o Povo Brasileiro reconhecem nele um livro descritivo do brasileiro em si, estas são econômicas no que tange a menções aos personagens fictícios que o formam. É, de fato, um desafio falar sobre personagens ao mesmo tempo tão distintos e tão próximos entre si e o tempo, que deveria ser um regente deles, acaba sendo um artifício meramente alegórico, já que as gerações se sucedem e herdam as características de seus pais, avós e assim por diante. Talvez por isso, e aqui vai um conselho, seja recomendável que o futuro leitor tenha consigo uma caderneta de anotações das datas e acontecimentos narrados, as quais serão de enorme valia.
Curiosamente, a gama dos personagens inesquecíveis de Viva o Povo Brasileiro começa com um ser desprezível: o descendente de portugueses Perilo Ambrósio Góes Farinha, natural da região do Recôncavo Baiano, onde se passa a maioria das páginas da obra. Ao "lutar" pela independência do Brasil, ele comete algumas atrocidades para abocanhar um espaço de destaque na sociedade baiana dos anos 1820. Perilo é o típico vilão de um livro histórico brasileiro que trata, dentre outros aspectos, da tragédia da escravidão: ele é um homem abominável no trato com seus escravos e, ao mesmo tempo, ganancioso e animalesco.
A trajetória de Perilo, nas primeiras páginas da obra, solidifica, entretanto, as bases da ficção brilhante que João Ubaldo Ribeiro constrói a partir desse personagem. Na verdade, Perilo era apenas uma "engrenagem" de uma estrutura social que estava em seus primeiros passos: a escravidão já não era tão recente e haviam os chamados mulatos, normalmente homens nascidos livres ou alforriados que poderiam ser donos de outros escravos, mas, no geral, eram pessoas com boas posses e um trânsito (restrito) com os grandes fazendeiros ou senhores de engenho, estes sim, brancos e descendentes de portugueses.
O chamado Nego Leléu simboliza essa nova classe de libertos. Aqui, o leitor terá um contraponto a Perilo: Nego Leléu é o personagem mais divertido do livro, um homem com uma crença absurda no trabalho e na influência que ele exerce sobre o caráter do indivíduo. Analfabeto, mas com uma sagacidade única, ele protagoniza várias passagens memoráveis e cômicas (uma transação que ele faz com um escrivão, cidadão letrado e alfabetizado, é hilária). Mas nem tudo em sua vida é alegria: por motivos que aqui não podem ser citados, ele acaba entrando em contato com Vevé, uma escrava de Perilo Ambrósio e isso acaba afetando decisivamente a sua trajetória.
Vevé é descendente de Dadinha, uma típica mãe de santo, popular na Bahia e que, em sua estirpe, conduz ao imenso arcabouço de lendas e costumes africanos as quais João Ubaldo Ribeiro derrama nas linhas da obra. Ainda hoje objeto de enorme preconceito, as religiões e crenças dos afrodescendentes são riquíssimas em matéria de simbolismos e misticismos, muitos deles ainda vivos na atualidade e bem explorados em momentos pontuais na narrativa.
Além destes personagens, esta "primeira fase" do livro traz Amleto Ferreira, mestiço filho de negra liberta com um navegador inglês e guarda-livros (o que hoje seria equivalente a um contador) do mesmo Perilo Ambrósio supracitado. Amleto funciona como uma ponte entre essa atmosfera de "alta sociedade" dos primeiros anos após a Independência a uma nova estratificação social que se torna sólida nas décadas seguintes.
Basicamente, partindo desses personagens João Ubaldo Ribeiro constrói as estirpes ora independentes ora relacionadas entre si que marcam a inesquecível narrativa ficcional de Viva o Povo Brasileiro. As gerações posteriores, formadas por gente como a maravilhosa Maria da Fé, os aristocratas Bonifácio Odulfo e Patrício Macário, o corajoso Zé Popó, dentre outros, trarão ao futuro leitor momentos de emoção, ensinamentos, reflexões, comicidades e outros sentimentos, coroados com uma sensação de pertencimento e resgate da história do Brasil.
A habilidade narrativa, de construção desta ficção, acaba se destacando em relação ao caráter antropológico do povo brasileiro. São coisas que, na verdade, confundem-se: ao criar uma imensidade de personagens inesquecíveis, o autor monta uma descrição precisa do que é ser brasileiro: do famigerado "jeitinho", das hipocrisias da alta sociedade, das negociatas e cambalachos, da corrupção e suas raízes... Mas ser brasileiro também é ser corajoso, aguerrido, irreverente e bondoso, e isso também está justamente representado.
O Exército brasileiro, que passou a influenciar mais decisivamente na vida do país a partir da segunda metade do século XIX, é empregado por João Ubaldo Ribeiro como a ferramenta perfeita para mostrar todos estes aspectos conjuntamente. E também elucida a relação entre patriotismo e povo, elementos que vinham sendo tratados de forma separada, mas que não podem ser entendidos sobre ângulos distintos (as experiências e momentos históricos na época ocorridos derrubam qualquer barreira entre povo e pátria).
Outro instituto sabiamente empregado como simbólico das mazelas do Brasil é a descrição da classe política dominante, do que posteriormente chamou-se de coronelismo, ainda hoje influenciando na vida dos centros urbanos do interior do país. Dentre as várias atitudes condenáveis, João Ubaldo Ribeiro destaca a faceta daquele político de bem, que prega pelos bons costumes, pela ordem e progresso, pelos valores cristãos e da família, mas a qual acha aceitável que um filho consiga vaga em universidade sem passar por processo seletivo algum, ou que seja inocentado num caso de abuso sexual e assim por diante. Seria somente cômico se não fosse trágico (e atual).
A genialidade que o autor possui em criar tamanha ficção traduz-se, além da já presumível capacidade de misturar história real com personagens fictícios, em duas características localizadas. A primeira delas refere-se à montagem de personagens que, num primeiro momento, são desprezíveis, mas as quais se tornam mais admirados com o passar dos anos e vice-versa: como pessoas comuns, a grande maioria dos tipos de Viva o Povo Brasileiro não é totalmente perfeita nem totalmente maléfica. Certos eventos marcam a vida de uma pessoa de tal forma que depois disso o indivíduo não é mais o mesmo; isso acontece na prática e, felizmente, na ficção. A outra característica é mais específica: ao narrar a famosa Batalha de Tuiuti (1866), que praticamente determinou o fim da Guerra do Paraguai, João Ubaldo Ribeiro não usa termos bélicos, estratégias militares e outras técnicas narrativas convencionais para tal descrição: ele simplesmente utiliza lendas africanas que pregavam a existência de divindades específicas (os Orixás) e a participação de cada uma delas na batalha, num momento de intensa criatividade e de uma força alegórica memorável.
Toda esta miríade formada por ficção, história real e lendas acaba por solidificar uma conclusão óbvia, mas que de uns anos para cá vem sido esquecida: o conhecimento liberta. Grande parte das mazelas conscientes, derivadas de costumes as quais nós desenvolvemos como brasileiros, poderia ser evitada a partir da obtenção de instrução. Não o simples ato de ler e escrever, mas principalmente o desenvolvimento de um senso crítico cuja ausência se reflete no desenvolvimento social do Brasil. Em vários momentos, de uma forma bem sutil, João Ubaldo Ribeiro cita a importância do aprendizado não apenas como fundamental na construção de um país melhor, mas também como algo que está intrínseco à nossa existência: para ele, viver é aprender, seja academicamente falando ou assimilando valores e atitudes construtivas não necessariamente oriundas de um ambiente escolar ou pedagógico.
Viva o Povo Brasileiro é um livro único dentro da literatura nacional, aquele que mais bem captou a alma (ou as almas, já que a obra traz uma teoria fascinante para a alma de cada um) do brasileiro em todas as suas vicissitudes ao longo dos séculos. Por ser único, ele precisa ser lido, relido, estudado e, fundamentalmente louvado: a vida de um (a) apaixonado (a) por leitura não será mais a mesma depois que a última página da obra é concluída, seja como leitor (a) e, principalmente, como brasileiro (a).