Elder F, 26/12/2015
Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor
Um dos motivos que me fizeram não gostar de "1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil" do Laurentino Gomes, que fala da transferência da corte portuguesa para o Brasil, é que o autor, por falta de experiência e formação em história, narrou os fatos históricos a partir da perspectiva do descobridor ou, como diriam os nativos da nossa terra se soubessem português na época da chegada dos estrangeiros, a partir da perspectiva do invasor. A história brasileira que conhecemos é raramente protagonizada pelos que tiveram suas terras roubadas, suas costas marcadas pelo chicote do senhor, sua pureza roubada pelo homem branco e sua fome perpetuada pela desigualdade social. O povo brasileiro, que sempre ficou a mercê dos que estão no poder, vez em outra têm sua história (parcialmente) contada, mas isso apenas quando não é a omitem por inteiro.
Na onda de protestos que invadiu o Brasil em 2015, muitos levantaram a bandeira da ditadura militar sob o pretexto de que naquela época é que se vivia bem, pois nada de mal acontecia ao bom cidadão cumpridor de seus deveres. No entanto, os anos da ditadura se descortinaram em tempos em que pobres e famintos foram todos silenciados ou, melhor dizendo, apagados da história. Assim, o argumento dos defensores da ditadura militar defende o regime como se pobres nunca tivessem existido, pois o que importa é que a classe média, alta e aculturada vivia bem. Em 21 anos, o governo ditatorial levou ao agravamento da pobreza e das desigualdades, sem levar em consideração a censura, torturas e negação a participação social, mas ainda assim, alguns fecham os olhos e apagam o povo brasileiro da sua própria história. O "cidadão de bem", abastado e morador de bairro nobre, vivia bem, o resto, bem, é melhor apagar o resto da história.
No filme "Histórias Cruzadas" (2011), que se passa durante a era dos direitos civis nos Estados Unidos de 1960, a jornalista Skeeter decide escrever um livro onde ela possa mostrar a perspectiva das empregadas domésticas vítimas de racismo nas casas onde trabalham. Em um dos melhores momentos do filme, a doméstica Aibileen Clark, emocionada com o resultado da iniciativa, desabafa: "Ninguém nunca tinha me perguntado como era ser eu, mas quando eu disse a verdade sobre isso, eu me senti livre." Em "Viva o Povo Brasileiro" de João Ubaldo Ribeiro, o baiano também dá voz aos oprimidos e finalmente tira as amarras que prendem o povo brasileiro ao esquecimento para enfim colocá-lo como protagonista da sua própria história, libertando-o do papel de mero personagem secundário que sempre exerceu e dando-lhe a voz do narrador.
Em "Viva o Povo Brasileiro", as vozes que foram silenciadas são ouvidas e a história, que sempre foi contada por aqueles que detinham o poder, é narrada por aqueles que se identificam como sendo o próprio povo brasileiro. Na obra, João Ubaldo Ribeiro mescla a realidade com a ficção para contar a história da construção da nação brasileira durante o século XIX e XX, utilizando-se de personagens de descendência africana, indígena e europeia e realizando uma análise minuciosa da formação do sentimento nacional, do sentir-se brasileiro. Ao percorrer várias etapas da construção da nação brasileira, o romance visita as lutas pela independência, a abolição da escravatura, a Guerra dos Farrapos, a Guerra do Paraguai, a campanha de Canudos e culmina com o questionamento da origem dos problemas que se perpetuam ao longo do processo de formação e afirmação da nação brasileira.
É interessante observar na obra personagens com linha de raciocínio similares a alguns que hoje encontramos ao redor de nós. O Nego Leléu, por exemplo, é um personagem que transita entre povo e civilização e, aculturado, conforma-se com a ideia de que o negro nunca vai conseguir deixar de ser escravo do branco. Do outro lado, Maria da Fé, neta do Nego Leléu, questiona-se sempre sobre a posição do negro na sociedade brasileira, criando em si um senso de justiça. Dafé, como depois ficou conhecida, acredita que a libertação só chega com conhecimento, mas não o conhecimento formal, o de escola, e sim o conhecimento da vida, do trabalho e o reconhecimento do valor da raça negra. Assim, os personagens de João Ubaldo Ribeiro dão voz a história dos oprimidos e suscitam o pensamento crítico nos outros personagens e no próprio leitor.
Dentre as diferentes vozes da narrativa, Amleto Ferreira chamou minha atenção, pois este esconde a todo custo a real identidade de sua mãe, negra, a fim de manter uma imagem de "europeu superior" e livrar-se da identidade mestiça. Ao renegar suas origens, Amleto sofre uma transformação, onde esconde sua brasilidade para se tornar o opressor, chegando até mesmo a falsificar papéis para alterar seu sobrenome para Ferreira-Dutton, que lembra lordes ingleses de renome e requinte, bem diferente do populacho que estava acostumado a lidar. As atitudes de Amleto lembram as palavras do educador brasileiro Paulo Freire: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor." E nessa mesma vontade de oprimir, também surge a personagem D. Henriqueta Ferreira-Dutton, que muito se orgulha por falar como se fosse portuguesa, embora seja brasileiríssima.
D. Henriqueta Ferreira-Dutton se enerva, em um dado momento da história, quando sua criada Dadeca, ao invés de falar "madame", cai no erro de chamar Henriqueta de "madamezinha". Ao ouvir tamanho disparate, Henriqueta diz sobressaltada: "- E quantas vezes já te disse para não me chamares de madamezinha, madame é uma palavra francesa, madamezinha é um barbarismo, coisa de negro, será que não aprendes nada?" Na hora lembrei das inúmeras D. Henriquetas dos dias atuais que, ao ouvirem alguém falar "zap-zap", enchem-se de cóleras. Zap-zap? Mas que coisa horrenda, dizem, esse abrasileiramento do inglês WhatsApp, WhatsApp que soa natural, que faz a língua subir e descer e os lábios se fecharem e abrirem rapidamente no "P" mudo. "Zap-zap" é coisa de povão, de gente que não tem instrução, que não sabe o mínimo de inglês: um horror. E assim, o leitor percebe como costumes de séculos e séculos atrás ainda aparecem incutidos no nosso dia-a-dia.
A história de João Ubaldo Ribeiro, que considero sua obra-prima, deixa exposta a hipocrisia dos senhores de escravos, que queimam o peito de seus escravos mas tudo bem rápido que é pra dar tempo de chegar sem atraso na missa, mas que também dá voz a ira do homem subjugado e oprimido, que tem no peito as chagas de uma vida onde tudo lhe foi tirado, inclusive a liberdade. "Viva o Povo Brasileiro" retira das ruínas da nossa história a memória de um povo excluído e, mais do que tudo, desperta no leitor um sentimento de brasilidade e de identificação com o povo brasileiro. Ainda que a sociedade brasileira sempre tenha tido diferentes percepções sobre o que somos nós e o que é o povo, é indubitável que o ser brasileiro se mescla com o ser o povo. Nós somos o povo e viva o povo brasileiro!
site: http://www.oepitafio.com/2015/12/viva-o-povo-brasileiro-joao-ubaldo.html