Prisci 04/03/2021
o aberrante e o sublime coexistem
A obra me deixou uma impressão muito forte após a leitura e, agora, revisitando o livro para relembrar, o efeito foi novamente profundo. Apesar de tratar da tristeza, do luto, da solidão, da melancolia, da miséria humana, terminei o livro abismada com a capacidade de Valter Hugo Mãe de tratar desses assuntos com tanta beleza, criando imagens sensíveis e de dimensão poética que beira o sublime, em função do lirismo presente em sua escrita. O brutal é retratado com tamanho lirismo que até parece belo, mas uma melancolia pungente, apesar de por vezes sutil, perpassa o texto do início ao fim.
Essa melancolia pode estar relacionada a profunda solidão também presente na narrativa. A solidão do homens que é maximizada perante a grandiosidade gélida da Islândia. Os personagens se desumanizam ao longo do texto a medida em que se mostram incapazes de estabelecer conexões humanas genuínas. Halla teve essa conexão com Sigridur, e, após sua morte, jamais reencontrou. Só restou o vazio deixado por Sigridur. Essa ideia aparece no texto na seguinte passagem: "O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti." (p. 24)
O livro coloca diversas vezes na mesma equação elementos essencialmente opostos, como o brutal e o belo coexistindo em uma só situação, através de uma relação entre o conteúdo e forma de narrá-lo. Temos uma demonstração dessa dinâmica logo no começo do livro, em que Halla se perturba ao imaginar o corpo enterrado da irmã sendo devorado por vermes, e essa imagem criada pelo autor logo é contraposta à imagem graciosa da "criança bonsai", em que descreve os bonsais como uma árvore graciosa e pequenina, humilhada em sua grandeza perdida. Observamos isso também na personagem de Halla, em dois elementos opostos que a constituem. É como se a inocência fosse o extremo de um contínuo, e a desumanização fosse a outra ponta. De alguma forma, conseguimos visualizar os dois extremos na personagem de Halla, e não necessariamente ela passa de um extremo ao outro ao longo da narrativa, mas a inocência e a desumanização coexistem na personagem em seu processo de se tornar, aos 12 anos, "uma mulher tão completa quanto apenas a tristeza as sabia fazer", o que torna tão difícil a tarefa de defini-la, ou mesmo chegar a entendê-la. E talvez o mesmo se aplique a sensação que tive com o próprio livro, em que o aberrante e o sublime coexistem, e é difícil definir os sentimentos que isso provoca.
Fiquei muito impressionada com a escrita do autor, imediatamente após terminar a leitura de "A desumanização" encomendei mais um romance escrito por ele, e li "Homens imprudentemente poéticos" logo na sequência. A experiência foi novamente ímpar, em mais uma história recheada de imagens poéticas, lindas e profundas metáforas, sempre em contraste com algo de brutal e cruel, quando não atroz e hediondo, mais um enredo profundamente humano, e narrado com o mesmo lirismo.