spoiler visualizarMarcio 25/11/2012
Trechos prediletos de: "Cinefilô - as mais belas questõs de filosofia no cinema"
Em 19/11/2012
Título original: “Les plus belles questions de la philosophie sur grand écran”
Autor: Ollivier Pourriol
Ano: 2008, Hachette Littératures, de Paris, França.
Edição brasileira:
Este livro foi publicado no âmbito do "Ano da França no Brasil" (21 de abril a 15 de novembro de 2008) e do programa de apoio à publicação Carlos Drumond de Andrade. COntou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores.
Título: "Cinefilô - as mais belas questõs de filosofia no cinema"
Tradução para o português: André Telles
Editora: Zahar / www.zahar.com.br
Projeto gráfico: Bruna Benvegnú
Capa: Sérgio Campante
Ilustração da capa: Printstock/CSA Images/Corbis
1. Eu e os outros, como encontrar a alegria?
O inferno, ou o ciúme; X-Men ou a arte dos bons encontros
A ética dos X-Men
Para melhor compreender a diferença entre o bom e mau, de um lado, e bem e mal, de outro, recorremos a X-Men, filme de ficção científica adaptado de uma história em quadrinhos que põe em cena mutantes com poderes sobrenaturais. O filme começa com uma cena espantosa. Estamos em 1944, na Polônia, num campo de concentração que logo de torna de extermínio. Chove, os cães dos soldados latem. Uma criança, separada da mãe, a vê partir para a morte enquanto um portão de ferro fecha-se atrás dela. A criança estica desesperadamente os braços para ela, gritando. A força de sua emoção é suficiente para deformar o metal do portão que os separa. Soldados alemães tentam conte-lo, ele continua a atuar sobre o metal exclusivamente com a vontade. Eles o atacam. Fim da cena. Porque isso é tão espantoso? Porque não há lugar no mundo onde os homens tenham padecido e sofrido tanto, separados de sua potência, quanto nesses campos. Ver uma criança agir ali onde todos padecem satisfaz um desejo do espectador, que sofre ao ver um personagem sofrer. Vamos examinar tudo isso mais detidamente, mas lembrem-se dessa criança, em breve iremos reencontrá-la.
Vamos dar uma resumida. Paixão distingue-se de ação. Padecer é sofrer alguma coisa do exterior, é não estar integralmente na origem do que sentimos, é ser, no melhor dos casos, sua causa parcial. Agir é estar por inteiro na origem, essa é a causa adequada do efeito oque provocamos e do efeito que sentimos. Agir é manifestar sua potência. Sofrer é ser separado de sua potência.
Falou-se igualmente de relações de compatibilidade e de incompatibilidade. Vamos explorar em detalhes o que isso significa. Essa é uma ideia essencial de Alain, que tem consequências enormes. Da mesma forma que nos convida a substituir ideias gerais e, portanto, vazias de bem e mal, pelas ideias singulares de bom e mau, em outros termos, a substituir a moral abstrata pela ética concreta, Spinoza sustenta que o que define nossas relações e o que nos define a nós mesmos são menos espécies ou gêneros, que são ideias gerais, abstrações, do que as relações de compatibilidade ou incompatibilidade que estabelecemos com os outros. Por exemplo, o que vai definir um animal, não é seu pertencimento a uma espécie, a espécie cavalo ou a espécie sapo, mas uma potência de ser afetado. Não é o que ele é em si, mas o que ele pode fazer e o que pode sofrer, de que tipo de afeto ele é capaz. Vocês me dirão: a espécie a que se pertence define, grosso modo, de uma só vez, os tipos de afeto aos quais nossos corpos são capazes. O próprio Spinoza diz: o homem não precisa da perfeição do cavalo. Cada espécie tem sua perfeição própria. Sim, mas a espécie define um quadro geral, ela não diz (quase nada) acerca do indivíduo. Se lhe propõem escolher um cachorro num canil, todos correspondem à espécie cão, mas há um para o qual você se dirige, ou que virá em sua direção. São todos bonitos, mas aquele... O mesmo princípio opera numa boate, onde, naturalmente, buscamos uma mulher ou homem genericamente, mas é aquele indivíduo que irá nos atrair e aquele outro repugnar-nos, como se no fundo, não pertencessem a mesma espécie. Hemingway dizia que não gostava nem de cachorros nem de gatos. Tinha, entretanto, dezenas. Ele queria dizer que não gostava dos animais em geral, como espécie, mas que gostava de determinado cão por determinado traço de caráter, de determinado gato porque montava guarda diante do berço do seu bebê, etc.
Spinoza convida-nos a esquecer a espécie a qual pertencemos para descobrirmos o que nos singulariza e define como indivíduo. Para isso, temos um bom ponto de partida: nosso corpo.
“Ninguém com efeito, determinou até hoje o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém até o momento o que, graças exclusivamente às leis da Natureza – considerada apenas corporalmente -, o corpo pode ou não fazer sem que seja determinado pela mente.” (Ética, III, proposição 2, escólio.)
Ignoramos o que pode o corpo... O corpo encerra surpresas. Pode mais do que julgamos. Como saber do que é capaz? Pelos encontros que fazemos. É necessário fazer um teste. É multiplicando os encontros, que aprendemos quem somos, isto é, com quem ou o quê, somos compatíveis, o que aumenta nossa potência e proporciona nossa alegria; ou, ao contrário, com quem ou o quê somos incompatíveis, o que diminui nossa potência e nos proporciona tristeza. Exemplo: se enfio a mão na água quente, isso é compatível comigo; se for na água fervendo, é incompatível. Ou é bom e me proporciona alegria, ou é mau, e me proporciona tristeza.
(...) Examinemos o problema à luz dos X-Man. Fomos apresentados aos “bons” mutantes, liderados pelo benevolente professor Xavier. Agora vejamos o vilão “Magneto”. Vocês se lembram daquele filho louco de desespero vendo sua mãe partir para a morte num campo nazista em 1944? Daquele capaz de deformar o metal do portão que o separa de sua mãe? Pois bem, essa criança cresceu. Assim como seus poderes. Essa criança cheia de amor, tornou-se em virtude da tristeza, um imã gigante cheio de ódio: o malvado Magneto. Platão diria aqui: “Ninguém é malvado voluntariamente”, o malvado é sempre aquele mal enraizado. A maldade mergulha suas raízes num mal-entendido sobre a natureza do bom e do mau. O malvado acredita que o ódio lhe faz bem. Da mesma maneira que o marido ciumento de ciúme, o inferno precipitava-se num espiral de ódio, e numa espiral negativa do mesmo gênero. Entretanto, seu ódio e sua tristeza eram, no início, legítimos. Como não ficar triste ao ver sua mãe assassinada? Como não odiar os nazistas? Mas sejam quais forem os objetos “fora de nós” sobre os quais incidam nossos sentimentos, o que conta, no fim, é o efeito desses sentimentos “em nós”. A verdadeira vitória dos nazistas é o ódio que eles inspiram. Esse ódio transformou uma criança inocente em um paranoico violento.
Magneto acredita, como todo aquele que odeia, que basta decompor a referência do outro para manter a sua. Basta destruir o outro para construir-se ou conservar-se. Logo, ele não procura controlar sua própria potência, mas ganhar poder. Que diferença há entre potência e poder? Simplificando, a potência é positiva; o poder, negativo. A potência, afirma o ser; o poder separa os seres de sua potência. O poder, no fundo, não passa de uma má utilização da potência. O bom professor Xavier procura desenvolver a sua potência e a dos outros. O poder é uma potência que se degradou e que extrai sua alegria da tristeza dos outros.
Mas o que fazer quando somos agredidos? Não devemos nos defender e tentar destruir os que desejam nossa destruição? Magneto, e é o que faz um malvado cativante, não tem más intenções. Quer apenas defender-se por todos os meios. De fato, os seres humanos normais tem medo dos mutantes e se manifestam como tais, a se apontarem, em outras palavras, a se denunciarem. Percebemos que Magneto não gosta disso, pois lhe lembra a perseguição nazista. Em vez de aceitas a imposição, Magneto sequestra o senador que encabeça esse movimento paranoico e, no lugar de convence-lo, contenta-se em transforma-lo igualmente em mutante. Não argumentará com ele, o magnetizará. Observamos nos rostos, a mudança que ocorre: de um lado, o senador, que recebe uma potência; de outro, Magneto, que perde essa potência ao aplicá-la. Ele se esvazia a medida que afeta o outro: isso suga sua energia. Vemos que ele não pode fazer mal se não na proporção do que ele próprio lhe causa. Essa é a essência do ódio. O que ele faz “fora de nós” faz também “em nós”. Magneto termina então esgotado. O ódio não tem futuro.
Magneto é um personagem particularmente interessante por mais de um motivo. Em primeiro lugar, não se declara inimigo do gênero humano. É o contrário: o gênero humano declara-se inimigo dos mutantes. Depois, não considera os humanos inimigos pessoais, mas inimigos de todos os mutantes. Depois, não considera os humanos inimigos pessoais, mas inimigos de todos os mutantes. Há altruísmo em sua iniciativa: ele não quer salvar-se a si mesmo, quer salvar todos os mutantes, incluindo os X-Men do professor Xavier, que, no entanto, lutam contra ele. Enfim, não se contenta, como um reles vilão, em querer destruir seus inimigos. Ele não os mata: faz deles mutantes, obrigando-os assim a mudar de ponto de vista e rever seus preconceitos sobre o que é normal ou não. É a pedagogia do músculo. Um pouco como se, por um passe de mágica, Hitler se visse na pele de um judeu deportado. Será que ele não mudaria de ponto de vista?
(...) Magneto, prisioneiro por hora, enquanto joga xadrez faz nascer uma paixão triste do professor: o medo. O objetivo de Magneto é sempre separar o outro de sua potência e exercer um poder sobre ele.
- Isto não o acorda no meio da noite, a ideia de que eles adotarão essa lei ridícula, ou outra do mesmo gênero, e que virão procura-lo, a você e seus alunos?
- É realmente.
- E o que faz quando abre os olhos?
- Sinto sobretudo uma grande pena de quem vem a essa escola com um objetivo maligno.
- Charles, por que vem aqui?
- Se sabe a resposta, porque a pergunta?
- Claro. Sua eterna busca pela esperança. Você sabe que a prisão de plástico deles não vai me segurar para sempre. Essa guerra acontecerá de verdade e tenho a intenção de lutar, com todos os recursos necessários.
- E você me terá sempre diante de você, velho amigo.
Por que o professor Xavier continua a visitar Magneto? Porque neutralizar o mau, não basta para o homem razoável. É impossível amar a razão e as prisões ao mesmo tempo. Em vez de separa-lo de sua potência de maneira compulsória, o professor Xavier gostaria que Magneto renunciasse ao ódio e alinha-se ao lado da razão. Ele imagina que, com sua presença e sua conversa, vai chamar a razão aquele que utiliza sua potência de maneira vil. Isso não é uma ingenuidade culpada – o professor X é igualmente capaz de combater sem medo -, mas uma ambição profundamente spinozista, no sentido que não seria característica não somente de Spinoza, mas no sentido de que é marca da razão.
Enquanto aquele que quer responder as injúrias com o ódio vive na tristeza ou na mágoa, aquele que vencer o ódio com o amor combate alegremente e sem temor. Triunfa tanto sobre um grande número de inimigos quanto sobre um único, prescindindo de todo socorro da fortuna. Aqueles a quem ele consegue vencer ficam alegres por tem sido derrotados; e, derrotados, eles não são menos fortes; ao contrário, são mais fortes.
Eis por que ali onde o apaixonado, o louco e o escravo veem um inimigo, o homem razoável vê um “velho amigo”. Ele quer torna-lo mais forte, quer curar Magneto do ódio dando-lhe o exemplo e, se é que podemos dizer, por um magnetismo positivo, amando-o. O amor, arma absoluta.