milkshakespeare 10/06/2024
As faces do feminino em Alencar: a virgem dos lábios de mel
Quando tive o meu primeiro contato de prazer com a literatura clássica, tive contato com a literatura estrangeira clássica - a qual valorizava. Eu fui ensinada a subestimar o clássico brasileiro, ainda mais um clássico romântico brasileiro. Entendi que uma leitura como essa jamais poderia ser divertida ou prazerosa. Era uma obra histórica, tediosa, irreal. Livro de vestibular. O que mudou a minha perspectiva foi entender que uma história feita pelo nosso país é, antes de tudo, uma história que revela o significado que atribuímos às palavras como brasileiros, o que entendemos ser uma coisa enquanto coletivo. Elas refletem o caráter vivo e a natureza histórica da linguagem. "Iracema" e tantas outras obras do mesmo autor, que se concentram em uma protagonista feminina, é uma história sobre isso. É uma história sobre a nossa Eva, é uma história sobre um significado dentre tantos que atribuímos a figura da mulher, é um encontro da nossa face feminina. Sim, é uma figura idealizada, mas toda obra fictícia é o quê senão o produto da imaginação, das nossas ideias? Nietzsche disse: "Temos a arte para não morrer da verdade". Temos os lábios de mel de Iracema para representar a nossa candura, o nosso lado que é doce; temos a sua virgindade para representar o nosso lado que sente medo e desejo pelo que é desconhecido; temos a sua paixão na figura de Martim para representar o milagre de crescer: sermos cativados por aquilo que é externo a nós, pelo que é o outro e não apenas eu, pelo que é oposto e, que mesmo sendo oposto, nos conquista, nos faz ceder pela primeira vez, mas não sem que antes haja uma guerra dentro de nós - e, às vezes, do lado de fora - porque ele é Afrodite e Marte ao mesmo tempo, terreno onde amor e guerra coexistem; temos a figura de Moacir, nosso Benjamin, para representar a dor dessa dualidade, o que nasce nesse conflito.
Com uma riqueza simbólica e histórica, "Iracema" é uma poema em prosa recheado de alegorias, que nos convida a entender a nossa identidade como brasileiros, como povo que nasce do sofrimento e sangue da colonização, a partir da figura da nossa mãe terra, a América - mas com sentimento, com lirismo, diferente dos livros didáticos. Como apesar de diferentes e únicos como indivíduos, temos os mesmos receios e anseios que, quando se unem pela identificação, formam esse coletivo singular. Essa história, portanto, não é de José de Alencar, mas nossa. Totalmente nossa. E devemos nos apropriar dela.