Babi159 24/06/2022
“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.”
Meu primeiro contato com esta obra foi em uma aula de literatura brasileira, no segundo ano do Ensino Médio. Recordo de minha professora da época, uma senhora fumante que, em realidade, era fumada pelos cigarros, falando que Iracema era tão perfeita que os galhos da floresta não ousavam ferir sua carne. Na época li alguns fragmentos da obra nas aulas e fiz uns exercícios toscos sobre, tendo em vista que pedir a leitura integral do texto era impossível. Minha professora não era o tipo que gostava de torturar adolescentes, logo sem leituras obrigatórias, sem avaliações e sem qualquer atividade que pudesse causar algum incômodo a ela.
Passados alguns séculos, resolvi ler a obra. Teria funcionado bem mais se eu tivesse lido aos 16 anos, mesmo que na época eu contasse com dois neurônios, e precisasse recorrer ao dicionário a cada parágrafo, o que ocorreu da mesma forma anos depois. Todavia, é preciso ter certo lirismo, certo ufanismo, certo romantismo para embarcar na viagem lendária proposta pelo Alencar, o que, de certa forma, é meu caso.
Contudo, passei da fase de idealizar corpos humanos (e não humanos também), e idealizava muito aos 16 anos. Levando em conta tal fato, Iracema é talvez a principal obra indianista (e higienista) do Romantismo brasileiro. Não vou me deter aqui às características do Romantismo nacional, mas a mais chata é o que eu chamo de síndrome de Sandy: as mocinhas dos livros do Romantismo eram absurdamente lindas, magras, voluptuosas, frágeis, virginais, sonsas (por natureza ou por ocasião) e desprovida de qualquer necessidade fisiológica, se é que vocês compreendem o que quero dizer.
Agora que fiz três parágrafos de contextualização, vamos às minhas “brilhantes” percepções sobre a obra máxima de Alencar, ou uma das, tendo em vista que o cara escreveu mais que o Stephen King e seus 348234328492482948 livros de almas penadas sanguinárias... Estou exagerando, acho! Vamos focar a seguir.
Iracema é uma belíssima garota indígena idealizada pelo José Alencar, um cara que amava um padrãozinho bem antes do termo ser teorizado. Além de ser desprovida de necessidades fisiológicas, a semideusa em questão tem o hálito de baunilha (no meio da selva!), é uma mulher limpa (e uma “mulher limpa é uma mulher boa”), perfumada, virgem, jovem (ela deve ser uma semiadolescente), guerreira e conhecedora das ervas alucinógenas. Seu único defeito é não ser católica, segundo o Alencar (eu vejo como uma baita qualidade, mas aí é outra história), mas ela logo deixa Tupã de lado por um boy crente.
A gata em questão está lá no Ceará, vivendo sua vida de virgem belíssima com umas crises existenciais inatas ao ser humano, enfrentando com pai e irmão uma guerrinha básica entre tribos ali e outra acolá. E aí conhece Martin, um português meio sem sal (eu o achei sem sal, todavia o Alencar o descreve como um super gato), mas que a faz abandonar tudo para ficar com ele. Eles se conhecem em toda uma situação romântica dela ferindo Martin, depois cuidando dele. Ele é gato, gentleman, cristão e todo aquele romantismo e o Alencar descrevendo isso da forma mais inacreditável possível, com um vocabulário puxado... E tu lá, toda acabada, lendo toda uma lenda de duas pessoas perfeitas se enamorando, com uma aba aberta para pesquisar palavras em tupi porque nem as notas de rodapé dão conta.
Antes de ler Iracema devo pontuar que li “O Guarani”, e tive um crush severo no Peri mesmo, às vezes, eu imaginando que ele tinha a aparência do Márcio Garcia, um cara que eu acho meio caótico. Imaginei isso, pois uma vez assisti uma adaptação vergonha alheia de “O Guarani”, no Canal Brasil, e o Márcio Garcia interpretava o Peri. Aquilo impregnou na minha mente de forma terrível, mas graças a Deus consegui esquecer minimante tal visão patética, abstraindo a imagem e vendo o Peri como o cara mais perfeito já criado na literatura mundial depois do Michael Hosea.
Porém, toda a admiração que tive pelo Peri não tive pelo Martin. Gente, para começar imaginei todo o tempo que o Martin era o John Rolfe, e a Iracema era a Pocahontas. A Disney realmente fez lavagem cerebral em mim, entretanto não conseguia ver de outra forma ambos, fora que o Martin não se doou a Iracema como o Peri se doou a Ceci. E o Martin era cristão, Peri pagão. Vejam só!
Assim como o John e a Poca, óbvio que Martin e Iracema se apaixonam e tem um relacionamento MUITO estranho. Povo, aquilo não é nem uma relação. É muita perfeição e beleza. É tudo muito estranho ao ponto deles se beijarem ao acordar sem bochechar um Listerine por 30 segundos, e Martin ainda destacar o hálito deleitável de Iracema ao amanhecer. Iracema só falta dormir maquiada e acordar plena. E outra: eles nem são casados, mas Iracema decide dar um “chá mágico” para o guerreiro branco. Com Martin drogado, mas lúcido (ele tem uma espécie de sonho lúcido pelo o que eu entendi ou estava totalmente fora de si), Iracema perde o título de virgem que o Alencar deu a ela, e vai viver com Martin. Ela fica grávida e tem um baby, o fruto do amor (?) de colonizado e colonizador, mas têm um destino para lá de trágico que eu não esperava. Alencar romantizando e idealizando sangue, amor unilateral, traição e aniquilação dos povos nativos. Que belo!
Quanto à escrita: Sabe aquele tipo de livro que você lê e pensa: “Meu Deus, o que é isso? O que está acontecendo? Será que isso tá acontecendo? Pera aí, vou voltar umas páginas porque perdi o fio da meada.” É mais ou menos assim que foi minha leitura de Iracema, mesmo eu já sabendo mais ou menos como era a lenda. O início do livro é difícil, mas também não é tão difícil quanto o terrorismo que apregoam à obra. Aliás, é possível perceber trechos de uma beleza ímpar no que tange escrita. Iracema e Martin e o chá mágico, Iracema falando do filho deles em seu útero e da aproximação do fim de sua existência terrena é de uma beleza indescritível. A própria descrição idealizada de Iracema é de uma poesia sem igual.
O livro também possui trechos que fariam uma feminista ter um ataque de pelanca. Para começar, Iracema abandona seu povo para ficar com um homem, colonizador e católico em nome do amor, e ela faz tudo o que vocês podem imaginar para agradar a Martin e ser a melhor esposa cristã possível, embora ela tenha suas crises existenciais e se sinta ingrata com seu povo. Porém ela segue se sacrificando por homem, ao ponto de morrer por ele. Gente!!! Não deveria ser o contrário? Só aí daria para fazer uma problematização das bravas. Eu teria muito a escrever também sobre valores cristãos presentes nesta obra, mas hoje é sexta, o frio é terrível. Fica para a próxima, mas daria uma discussão interessante.
Eu li o livro em e-book (bem digno, aliás, no Kindle), pois me nego a pagar livro em domínio público, mas não recomendo que façam isso com livros como este, e sim leiam o livro físico. Não é a minha leitura favorita do Romantismo brasileiro e nem do Alencar, mas vale a pena conferir.