Coruja 04/05/2011E começamos mais um mês e mais um tema do Desafio Literário 2011. Os livros que escolhi dessa vez passam todos pelo mesmo tema e, claro, não se trata de uma coincidência: investigações históricas.
Iniciamos então com o pé direito, com o absolutamente delicioso O Queijo e os Vermes de Carlo Ginzburg. Esse livro está na minha lista de leituras desde a época do colégio, continuou lá durante a faculdade e esperou ainda mais um pouco até que um belo dia chega um pacote da Régis com ele no meio. Ia começá-lo no final do ano passado, mas aí apareceu a lista de temas do DL e me segurei até agora. Quando finalmente comecei, não consegui mais largá-lo, emendei com a leitura do Os Andarilhos do Bem do mesmo autor e estou neste exato instante pesquisando o preço de outros livros dele.
O Queijo e os Vermes é um livro curioso, sobre um personagem mais curioso ainda. O moleiro Menocchio é um indivíduo do povo que sabe ler, escrever e interpretar - o que era algo quase impensável numa região rural da Itália em plena Idade Média.
Não estou sendo preconceituosa ou elitista. Tenho plena consciência de que a Idade Média não foi a Era de Trevas e Ignorância que nos foi impingida no colégio isso foi intriga da oposição, digo, dos renascentistas. Mas viver nesse tempo também não era nenhum passeio no parque, e se educação não era uma coisa comum nem mesmo entre a elite, que dirá de um moleiro numa aldeia minúscula de uma região inteiramente agrícola.
É difícil, assim, de entender como Menocchio teve acesso aos livros e idéias que o levaram a criar uma cosmogonia própria, que ecoa panteísmo, mitologia hindu, princípios filosóficos, tolerância religiosa e morais e sociais totalmente deslocados numa sociedade feudal.
É pela capacidade de usar um arcabouço principiológico muito além de sua posição social que Menocchio chamou a atenção do Tribunal do Santo Ofício em 1583 e, quatro séculos depois, o porquê desse processo ter chamado a atenção de Ginzburg.
Tenho uma amiga que é estudante de História. Um belo dia, estávamos conversando não sei bem sobre o quê quando surgiu o assunto desse livro. Ela observou que não entendia porque O Queijo e os Vermes fazia tanto sucesso fora do círculo de iniciados estudantes e historiadores de uma forma geral. Afinal, trata-se de uma investigação histórica que analisa dois processos jurídicos realizados pela Inquisição, não sobre sabás demoníacos, mas simplesmente sobre o caráter herético ou não de uma série de afirmações feitas por um moleiro.
À época, não o tinha lido ainda, de forma que nada pude argumentar. Agora, contudo, tenho uma boa razão para esse gosto que de certa forma me foi inspirado pela própria investigação feita no livro -: a história de Menocchio se conforma a muitas leituras, da mesma forma que Menocchio conformava tudo o que lia à sua visão, ultrapassando inclusive todos os limites de interpretação destes textos.
Aliás, é uma referência cruzada interessante relacionar esse livro ao Superinterpretação e Interpretação de Eco, porque essa questão dos limites interpretativos e até onde Menocchio vai para fazer com que os livros a que teve acesso a Bíblia em vulgata, ou seja, no vernáculo local e não em latim; o Decamerão numa edição não censurada, as viagens de sir John Mandeville, uma coletânea de evangelhos apócrifos, tratados teológico-filosóficos e até, acredita-se, um Alcorão se adaptem a um conjunto de crenças pré-cristãs que permeia ainda a cultura e a sociedade da qual faz parte, junto às suas próprias deduções.
A bem da verdade, houve momentos em que quase rolei de rir com a obstinação de Menocchio, que simplesmente descarta aquilo que não interessa à sua doutrina, não importa quão óbvio ou quão necessário aquele detalhe seja para a completude das teorias apresentadas nesses livros. É quase como se ele brincasse de cortar palavras a esmo de uma página escrita, de forma a montar frases que sejam o exato oposto do sentido geral da folha de onde foram tiradas.
No meio dessa confusão hermenêutica, contudo, a grande verdade é que não importa tanto assim como Menocchio chegou às suas conclusões que é o objetivo confesso do livro e o interesse dos historiadores. O que importa é que a despeito de seu isolamento professar idéias diferentes daquelas da maioria, especialmente numa época em que você pode virar churrasquinho se o fizer, não é exatamente a melhor maneira de se tornar popular em sua vila e do risco que corria frente às acusações pelas quais foi investigado, Menocchio teve coragem de expor suas idéias.
Mais que isso: ele ansiava quase desesperadamente por uma oportunidade como essa, em que poderia falar diante de pessoas que pudessem ouvi-lo e compreendê-lo.
Lemos amplamente O Queijo e os Vermes não para compreender e interpretar uma determinada época, mas porque seu protagonista tem traços de uma verdadeiro herói. Porque ele faz algo impensável, difícil mesmo nos dias de hoje: eleva-se acima de seu status e daquilo que era esperado dele para chocar e quebrar dogmas. Porque ele questiona. E porque é um dos homens mais corajosos ou loucos com que você já cruzou.
Ginzburg, a despeito de estar escrevendo um estudo profundo para um público específico, jamais cai na armadilha dos tecnicismos. Pelo contrário, ele acha que essa é uma história que vale à pena ser contada, e deixa óbvio ao longo de todo o livro sua surpresa, seu prazer, sua curiosidade em relação à figura do nosso bom moleiro.
Ele compartilha conosco sua admiração.
Eis porque O Queijo e os Vermes não é um livro exclusivamente para iniciados, porque vale à pena ler a história de Menocchio frente aos seus consternados inquisidores.