GH 30/12/2016
Aqui, todo dia é noite.
Rogério Pereira sem dúvidas é uma das revelações literárias contemporâneas, escritor este que fundou em 2000 o Jornal Rascunho - uma das raras publicações de literatura do país.
Para entender esta obra grandiosa, ou melhor, para entendê-la um pouco mais, aprecia-la de melhor maneira, vamos a uma breve contextualização:
''Zulma, a mãe de Rogério, não pôde estudar. Como a maioria das crianças pobres da sua infância no interior de Santa Catarina, ela trabalhava na roça. Quando se rebelava, e às vezes acontecia, a avó a enfiava dentro de um barril e sentava-se sobre ele. Zulma ficava lá, confinada até que a vontade de brincar passasse. Por cima dela, o corpo da avó e toda uma tradição de gente parida só para a enxada.
Esta história contada por uma mãe que escreve pouco além do nome e jamais leu um livro talvez seja a mais importante da vida de Rogério. Assombrado pelo barril, ele acreditou que só escaparia desta sina se fosse capaz de preencher o vazio com palavras. Se o barril estivesse repleto de histórias, não haveria espaço para a escuridão – nem para crianças na escuridão. É por isso que, quando lhe perguntam por que criou um jornal literário num país onde ainda tão poucos leem, Rogério responde que é a sua vingança contra o barril. Agora, o barril é fábula. Como fábula é possível conviver com ele. ''
Este texto foi da coluna da Eliane Brum, que na época trabalhava na Revista Época, hoje colunista do El País Brasil.
Após essa breve contextualização, podemos afirmar duas coisas. A primeira é que o texto não é de lá todo fictício (isso se for a algum momento!), mas é quase uma biografia, uma auto biografia nas entrelinhas, visto que nem o nome os personagens é nos apresentado. A segunda coisa é que, levando em conta a veracidade e verossimilhança do livro em questão, o impacto é maior, é ensurdecedor. A leitura nos rasga os olhos e despedaça nosso coração.
A ordem cronológica, a linha do tempo do livro não é exata, pois ora é narrada pelo irmão mais novo, ora pelo mais velho. A lembrança também nos assombra durante a leitura, quando se co-relacionam com acontecimentos narrados. Ainda aproveitando o gancho da história de sua mãe (a qual inclusive tem uma das dedicatórias), Rogério aqui nos trás uma leitura claustrofóbica, pois o enredo é focado ou na ''roça idílica'' ou na ''C.'', termo usado para mencionar a cidade. A vida no campo não era perfeita, mas podemos concluir que era mais aceitável, mas o que choca é que, a visão que ele nos passa de ser mais aceitável é que lá, no campo, na roça, perto das plantações, tudo que vos acontecia ficava lá, era apenas lá. Eles viviam um isolamento brutal sob um autoritarismo psicopata de um pai cujo mesmo possui um caráter asqueroso. Submissos, ele, o irmão, as irmãs e mãe, viviam sob as piores condições imagináveis.
A mãe é uma personagem curiosa. Sofre todos os tipos de abusos, no entanto tem uma fé inabalável. É uma fanática religiosa, que sempre está rezando, orando ou lendo a bíblia. Tenta influenciar seus filhos a seguirem o mesmo caminho, mas sem grande sucesso. Em especial um dos narradores, cujo mesmo sempre se pega questionando Deus. Então podemos acrescentar mais uma coisa a qual remete a infelicidade da mãe, a descrença de seus filhos a sua maior crença. (Queria poder listar o que ela passa durante toda a narrativa, mas seria tudo spoiler e talvez perdesse a graça da leitura)
''[...] Como acreditar, como crer no Deus da mãe? No Deus misericordioso, se Ele nos mandou o demônio para cuidar do seu rebanho? [...] '' (Pág. 15)
O início do livro é composto por cartas e lembranças de um dos filhos que está na guerra e de lá, escreve ao pai (que provavelmente não lê nenhuma delas) e ao irmão. Lá ele se sente de certa maneira feliz, pois fugiu do campo de concentração que era sua casa. Mas também mostra, as vezes, um arrependimento, uma insegurança, se sente covarde, pois largou todos para trás sob os cuidados do - como ele mesmo diz - Demônio.
O livro tem um liricismo grandioso. É melancólico, reflexivo e, devido aos locais onde se passam ora numa roça isolada, ora em ''C.'', também subterrâneo. Observamos uma escrita aos moldes Dostoieviskano, um monólogo dolorido, bruto.
Há tempos eu não lia algo tão dramático, mas, veja bem, o drama em questão, o adjetivo inserido para rotular a obra não é de modo pejorativo, jamais. O drama aqui flerta com todo um cotidiano - infelizmente - vividos ou sabidos de todos nós. Escuridão é morte, Amanhã é incerteza, mas também a certeza que nada de bom virá, afinal, como pode algo de bom vir de uma família nascido e construída pelo pecado? E mais, guiada por um demônio, um lixo humano, moldado a asco? Não é pessimismo, é realismo.