Alexandre Silveira 10/10/2017
Poesia que ilumina
Gullar (1930-2016) é considerado pela crítica especializada como uma das últimas vozes mais marcantes da poesia brasileira. As consagrações fazem jus ao trabalho desse autor maranhense, que além de escrever poemas ilustres, também se aventurou em contos, crônicas, ensaios, peças de teatro, dentre outras formas de produção. No caso, a edição de toda a poesia gullariana utilizada para esta resenha, está desatualizada, pois nela são encontrados apenas os poemas escritos até o ano de 1999, ficando de fora a produção poética póstuma do autor. Consta nesta edição, também, um texto de apresentação escrito por Sérgio Buarque de Holanda, que embora muito curto, incita o leitor a descobrir o que há de tão especial e grandioso na poesia de Gullar.
A obra poética de Ferreira Gullar costuma ser dividida em três fases, segundo estudiosos. A primeira diz respeito aos seus poemas experimentais, onde o poeta brinca com o concretismo e o neoconcretismo, movimentos que lhe deram destaque na literatura brasileira, justamente por sua inventividade, cabendo citar o livro A Luta Corporal; a segunda fase seria aquela que representa um Gullar mais político, onde este faz inúmeras críticas ao sistema social, utilizando a literatura como uma forma de denúncia e revolta, e nela temas como comunismo, injustiças e a luta de classes são recorrentes nos poemas; por fim, a terceira corresponde a um amadurecimento poético e pessoal do autor. Aqui, encontramos poemas com reflexões metafísicas e uma constante (arrisco dizer quase desesperada) preocupação com o tema da morte. Ao longo da leitura de todos esses poemas, o leitor pode acompanhar todo o processo de amadurecimento e as mudanças ocorridas na vida desse grande poeta. Aliás, os acontecimentos na vida de Gullar, que teve uma vida muito interessante, influenciaram em sua produção poética e em todas as suas transformações.
Apesar de toda a diversidade encontrada nos textos, alguns dos temas e imagens são recorrentes. Como exemplo, temos vários poemas cujo objeto de interesse é a figura de frutas apodrecendo num prato. O eu-lírico, no caso, observa tais frutas, enquanto têm epifanias a partir do olhar desse quadro. Tal imagem é construída nos poemas As Pêras (A Luta Corporal), Bananas Podres (Na Vertigem do Dia) e em Omissão (Barulhos). A partir dessas leituras, penso que esse fascínio por frutas apodrecendo pode corresponder a uma metáfora para a vida do próprio ser humano: nós somos as frutas e o apodrecer diz respeito ao correr da nossa vida, que logo consumirá nossos corpos vazios. Além disso, tendo em vista que Ferreira Gullar mantinha uma relação muito próxima ao mundo da arte e suas diferentes manifestações, escrevendo diversos ensaios sobre o tema, muitos deles bastante conhecidos (a exemplo: Vanguarda e subdesenvolvimento), é provável que a imagem posta em questão se associe à própria ideia de natureza morta. Tal expressão artística é constantemente representada em pinturas com frutas num prato, surgindo nas obras de artistas como Paul Cézanne e Claude Monet. Sabe-se, também, que um dos principais conceitos por trás de obras que são caracterizadas como natureza morta é expressar beleza e dar contraste em objetos inanimados. Gullar, portanto, estaria brincando com esse conceito ao mostrar-nos, através de sua poesia, a imagem suja de frutas apodrecendo, levando-nos a refletir sobre a realidade, os limites dos seres humanos e a sujeira que acompanha o correr das nossas vidas.
Ademais, elementos corporais também são frequentes nos textos do poeta, que acompanham essa edição de seus poemas publicada pela editora José Olympio. Em muitos poemas, partes do corpo do eu-lírico são constantemente colocadas em destaque, como uma forma de mostrar aquilo que é sua única ligação ao mundo real. No caso, um simples toque em si mesmo ou em objetos fazem com que a voz poética tenha reflexões acerca do universo à sua volta e de suas limitações como mero ser humano. A título de exemplo, temos isso nos poemas: Pele Sobre Pele, Tato (ambos encontrados no livro Muitas Vozes) e Homem Sentado (Na Vertigem do Dia).
Muitas leituras podem ser feitas e muitas imagens significativas podem ser encontradas nos poemas de Ferreira Gullar. Com lirismo melancólico, embora esperançoso em muitos momentos, Gullar conseguiu atingir aquilo que pretendia: acender uma luz de conforto em quem lesse seus poemas no desamparo da fria e cruel realidade em que nos encontramos.
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