Cristiane.Brasil 27/10/2024
Paraíso perdido
?Receive thy new possessor: one who brings
A mind not to be changed by place or time.
The mind is its own place, and in itself
Can make a heaven of hell, a hell of heaven.?
Depois de Shakespeare, é o Paraíso perdido a maior obra da literatura inglesa do século XVII.
Mesmo antes de falar das tentativas modernas para destroná-lo, convém observar que Milton nem sempre foi apreciado assim. Os seus contemporâneos, poetas e escritores da Restauração, desrespeitaram o puritano e republicano; e no começo do século XVIII a sua poesia renascentista já não foi compreendida. Mas nem mesmo os inimigos mais apaixonados de Milton aprovariam hoje esse disparate. O Paraíso perdido é um monumento.
O assunto é, segundo conceitos de um poeta cristão e de leitores cristãos, o mais importante de todos: a criação do homem, a queda de Adão e Eva, a expulsão do Paraíso, e o panorama visionário da história humana inteira, com a visão da Redenção nos confins do horizonte histórico. Mas o Paraíso perdido distingue-se de todas as outras epopeias por mais uma qualidade especial: a força dramática da caracterização das personagens; sobretudo o Satã de Milton é um dos maiores personagens dramáticos da literatura universal. E essas figuras sobrenaturais, de tamanho sobre-humano, movimentam-se em paisagens inesquecíveis- céu, inferno, paraíso terrestre -, transfigurações impressionantes da paisagem inglesa.
Milton é o Dante do protestantismo; e o público dos séculos XVIII e XIX apreciou Milton assim, conseguindo vencer a hostilidade da crítica. Mas será que a grandeza dantesca do poeta e da sua obra foi realmente compreendida? A evolução da glória do poeta corresponde à protestantização mais ou menos completa da Igreja anglicana no século XVIII, e às vitórias sucessivas da burguesia, particularmente ao aburguesamento da literatura. Milton passa, ou passava, por muitíssimo ortodoxo.
Só quando em 1825 foi descoberto um livro seu inédito, De Doctrina Christiana, cheio de opniões heréticas, não apenas a respeito do catolicismo, o que se entende num puritano, mas também heréticas a respeito do credo protestante e cristão em geral. Na obra Milton declara-se implacável herege ariano, aceitando o Pai, mas rejeitando a Trindade. Exalta a liberdade humana, inclusive a liberdade de pecar, mas tenta não exaltar a rebeldia humana contra um tirano celestial.
Thomas Macaulay chamou a atenção para a presença das mesmas heresias na epopeia: com efeito, Milton não acreditava na criação do mundo ?ex nihilo?, nem na divindade de Jesus Cristo; o poeta de uma epopeia sobre o pecado original acreditava até na liberdade absoluta da vontade humana. E só então os críticos perceberam a simpatia inconfundível com que no Paraíso perdido é caracterizado Satanás.
A poesia de Milton é síntese de classicismo aristocrático e puritanismo burguês. Pelos recursos usuais da expressão barroca o conflito não pôde ser resolvido, porque não é um conflito estético nem um conflito religioso, e sim um conflito moral. Dele nasceu um estilo ?sui generis?, que, evidentemente, não podia fugir às influências do ambiente, mas que é um Barroco todo especial, exclusivamente miltoniano.
Se considerarmos que nos seus últimos vinte anos Milton esteve totalmente cego, temos, em Paraíso perdido, um oráculo de vida interior. Não existe em língua inglesa obra-prima mais premeditada. Esse poema épico é um esplendor do barroco: presta-se à reflexão infinita; lido em voz alta (em inglês), é assombroso, e constitui um eterno desafio, até aos admiradores mais ardorosos. A um leitor novato, leigo e carente de conhecimento de Literatura Clássica, convém ler Paraíso perdido como uma espetacular obra de ficção científica. Embora Milton já tenha sido considerado o poeta protestante, assim como Dante ainda é o porta católico, após anos tem-se cada vez mais dúvidas se ele seria até mesmo um poeta cristão. Nos últimos anos de de vida o poeta pensava ter conhecimento de certas verdades, mas não se tratava de um credo. Milton, tanto quanto Shakespeare e Dante, é um gênio tão flagrante, que tentar descrever-lhe o talento pode parecer redundância. A força e a fertilidade de Milton são imensas, mas o interesse principal recai sobre o julgamento que fazemos do seu tão criticado alter ego demoníaco, Satã. Se Satanás, por mais perverso que seja, não for um gênio, o poema não existe. Oscar Wilde observou astutamente: ?O Diabo tudo deve a Milton?. O Satanás de Paraíso perdido é discípulo do Iago shakesperiano.
Milton tinha motivos para mágoas: Oliver Cromwell, seu grande ídolo, depois de morto, fora pendurado às portas de Londres, e Harry Vane, o melhor amigo do poeta, fora executado como regicida. Além disso, por mais corajoso que fosse, Milton, já totalmente cego, deve ter sofrido muito, ao ser preso, enquanto seus livros eram queimados, e foi preciso procedimentos diplomáticos para que o poeta fosse poupado. Milton e seu partido foram derrotados na guerra, assim como Satã e seus garbosos demônios haviam sido derrotados em uma outra luta.
Satã, assim como o predecessor, Iago, sofre em decorrência de Mérito Ignorado, pois foi preterido por Cristo, assim como Iago foi preterido por Cássio. A sensação de Mérito Ignorado costuma gerar ressentimento, e tanto Iago quanto Satanás são verdadeiros arquétipos de todos os Ressentidos em nossos dias. Até que ponto, cabe a pergunta, o próprio Milton sofreria em decorrência de Mérito Ignorado? O referido mal não afligia, em absoluto, o poeta. Milton passara por um contra-apocalipse, diante do desmoronamento de esperanças nacionais e pessoais. O filho morrera, as filhas mantinham-se distantes, dois casamentos haviam terminado, a visão fora perdida, a imagem pública destruída, os amigos haviam sido condenados ou se refugiado no exílio. Paraíso perdido surge da derrota total, com força e energia extraordinárias, e manifestam autoridade, orgulho e autoconfiança sublimes, além de espantosa combatividade.
Por meio da radiografia destes acontecimentos fundadores de muitos dogmas na história da humanidade, John Milton versa sobre a busca pela redenção, a tirania dos monarcas de sua época, representados pela figura de Satanás, além de fornecer material de base para a nossa cultura iconográfica, tendo encontrado ressonâncias em Eugene Delacroix, Salvador Dalí, dentre tantos outros mestres das artes, encantados com a atmosfera sombria do poema. Anticatólico, avesso ao regime monárquico e com postura puritana firme, o sofisticado autor que ditou os seus poemas enquanto se encontrava acometido pela cegueira criou uma obra-prima conhecida, como já mencionado, por ser um desafio para o leitor contemporâneo, tamanha a força dos seus versos, envolventes e, concomitantemente, tomados por muita complexidade.
Ao tratar do Gênesis, livro sobre a criação do mundo, do ser humano, da nossa moral condutora, da queda e da tentação subjacente ao homem, John Milton também refletiu sobre Eva e seu desconhecimento no que concerne ao que hoje, movimentos discutem como a busca pela identidade. O divórcio, defendido pelo poeta, também está nas entrelinhas desta pomposa jornada poética que flerta com a celeuma do homem que não consegue seguir os ensinamentos e orientações divinas e acaba adentrando pelo terreno da corrupção.
O uso do verso decassílabo (e tanto quanto possível heroico) no texto português parte do entendimento da sua centralidade não só formal mas também conceitual. Se a forma exterior do poema pode ser considerada uma tentação, então a simetria métrica afigura-se um bom meio de atenuar, por muito paradoxal que isto possa parecer. Sem rimas, isto é, com os versos brancos que para muitos não são atraentes, principalmente pelo fato de faltar musicalidade, algo que para Milton, poderia ser considerado uma simplificação da sua poesia, o poema reflete bastante do pensamento da época do seu autor, um homem erudito, de postura política firme e com escolhas literárias constantemente comparadas com Shakespeare.
Paraíso perdido é um trabalho magnífico, mas a sublime ambição da obra - explicar o mal de uma vez por todas - causa a queda de Milton no épico por ele próprio composto. O poeta não foi capaz de explicar o mal da Restauração monárquica, assim como não somos capazes de explicar os campos de extermínio instituídos por Hitler e os horrores de Stálin. Contudo, não é o fracasso inevitável do argumento central de Paraíso perdido, e sim o gênio de John Milton.
Em termos shakesperianos, Satanás é um herói-vilão, fazendo lembrar características de Macbeth e de Iago. De vez que Milton reúne espírito e poder em um só conceito. O gênio miltoniano nega qualquer distinção entre o natural e o transcendental, motivo pelo qual Satanás assume uma representação tão extraordinária.
A liberdade da imaginação miltoniana, segundo o próprio poeta, estava associada ao conceito de Luz Interior, preconizado pela tradição protestante radical, e à interpretação que o poeta advogava com respeito à Liberdade Cristã e à Liberdade dos Santos. Satã, dualista católico, não compreende a Fusão de espírito e energia nele próprio contida - eis a sua tragédia. O crítico W. B. C. Watkins, afirma que ?a paixão é sempre mais forte, em Milton, do que a razão?. Paraíso perdido é o épico da paixão, não da razão. Por isso, Satã é, esteticamente, superior a Adão, embora não a Eva. Na tentativa de distanciar-se de Satã, Milton, no livro V, apresenta-se como serafim Abdiel, cujo nome (que significa ?criado de Deus?), na Bíblia hebraica, pertence a um humano, não a um anjo. Abdiel é o único recalcitrante, em meio à numerosa hoste celestial de Satanás, o único anjo que se opõe a Satã.
O desafio de Abdiel provoca a resposta de Satanás, a mais problemática encontrada em todo o poema, justamente porque essa resposta se aproxima do cerne do gênio do próprio Milton:
?Recordas tu
O molde, quando o oleiro pôs o barro?
Não sei de ser em tempos quem não sou,
Nem de alguém a mim prévio? (V, 857-60)
Satanás aqui não fala por Milton, o ser humano, mas não será esse o posicionamento de Milton, o poeta? Não teria ele dito, também, ?a nossa pujança emana de nós mesmos?, e não de Shakespeare, ou de Spenser? A liberdade do poeta é a maior aspiração de Milton, o âmago da sua integridade. O leitor pode afirmar, se quiser, que essa liberdade resulta de uma leal obediência à vontade de Deus, mas quem haverá de interpretar tal vontade? Milton a interpretava para si mesmo, confiando, exclusivamente, em sua própria autoridade, para ele, idêntica ao seu próprio gênio.