Roberto Soares 24/03/2021Na sua "Eneida", Virgílio irá contar, em forma de poema épico, a história de Eneias, o herói troiano que, após a queda da cidade ao ser invadida pelos gregos, rumará para a Itália, onde irá estabelecer as bases da futura Roma. Em certos sentidos, a "Eneida" está para os romanos como a "Ilíada" e a "Odisseia" estão para os gregos: clássicos presentes em diversos campos da vida humana, sejam éticas, políticas, históricas, religiosas, culturais e poéticas: não apenas delicia o público, mas também educa. Mas existem particularidades importantes neste poema específico que consolidará seu lugar entre as obras mais importantes para a cultura ocidental. O contexto histórico e político no qual ele é concebido é um deles. Com o assassinato de Júlio César, a república cai. Guerras civis se alastram por todo o território, e o povo irá desejar a ordem e a paz mais do que a própria liberdade. Mas eis que Otaviano Augusto, herdeiro de César, derrota os revoltosos e assume o poder, se tornando o primeiro imperador do Império Romano, e dando início a um ambicionado período de paz. É durante a construção desse novo regime político que Virgílio está inserido, e coube a ele a empreitada de enaltecer a grandeza da nova Roma e seu imperador.
Virgílio irá narrar os últimos dias da cidade de Troia, lograda pelo cavalo de madeira e incendiada, seguindo-se a fuga de Eneias com seu pai, Anquises, e seu filho, Ascânio. A partir daí, inicia-se uma mini-odisseia, onde o herói irá cruzar os mares e enfrentará os desafios impostos pelo Destino, agravado pela antipatia perigosa da orgulhosa e rancorosa Juno. Nesse meio, testemunhamos duas das mais sublimes narrativas da literatura: a paixão trágica da rainha Dido e a descida de Eneias ao Inferno. Chegando à Itália, inicia-se a mini-ilíada da história, que será a guerra contra os povos itálicos nativos. É da vitória nessa guerra que irá depender o nascimento de Roma, dando início ao um período de paz e grandeza do povo.
Com isso, Virgílio irá combinar mito, história e política para dar um novo significado ao estado de coisas que ele e seus leitores, todos cansados da guerra, estavam enfrentando: tudo é nada mais que um espelhamento da primeira origem de Roma, e os conflitos civis são consequências necessárias para se alcançar a paz e a grandeza. Com isso, o público se vê no poema, via como algo seu, próximo, e daí o sucesso imediato da obra e sua relevância desde então.
Otaviano Augusto foi engrandecido como o ancestral de Eneias e o povo romano foi tido como progênie dos Dardânios, semelhantes aos deuses. O que para Eneias era um glorioso futuro, para o público da época era toda a história de Roma, a Troia renascida (Caesar Troianus). Logo, com a "Eneida", Roma passa a pertencer ao glorioso passado grego, uma continuidade do mundo medieval e lendário no mundo romano. Tem levantada de moral melhor que essa?
Eneias é um herói, mas não um herói individualista, nos moldes homéricos, ansiando pela glória pessoal, mesmo que pela morte. Não. Eneias vai ser tomado como um herói fundador e ético. Ao carregar os penates, invocar os deuses, erguer sempre os braços para o céu, buscar oráculos e se colocar como cumpridor de uma missão superior, ele se torna quase que um sacerdote. Não é por pouca coisa que percebi uma notável semelhança entre Eneias e Moisés, o herói hebreu do “Êxodo”. As qualidades dominantes de ambos são a piedade, a obstinação e uma elevada impersonalidade que fazem deles não homens, mas instrumentos dos deuses. Nas suas jornadas, não lhes é permitido se entregarem a paixões, pois ambos são os eleitos, destinados pelo Fado impassível a cumprirem um único papel na História: guiar e lutar pelo estabelecimento de um povo arrasado em uma terra prometida onde mana leite e mel.
A dignidade com que resiste aos desafios, a clemência, a justiça e a piedade para com os deuses, a pátria e o pai, consumam o caráter de Eneias, e com Moisés não é muito diferente, embora este último seja menos flexível que o primeiro.
Mas em ambos encontramos uma estrita observância à vontade divina, o que os tornarão fieis cumpridores de suas missões a todo custo, mesmo contra a própria vontade. Eneias sacrifica a sua felicidade pessoal em Cartago em prol de Roma, cujas bases há de assentar, mas que jamais verá. Moisés guiará e lutará pelo seu povo, mesmo após Javé deixar bem claro que ele não pisará na Terra Prometida. Nos dois casos, o bem de um só é renunciado pelo bem comum dos descendentes e do povo.
Ambos não tem nada a seu favor, a não ser obrigações e sacrifícios para cumprirem aquilo que foi designado pelo Destino e pelos deuses. A morte gloriosa, como a de Aquiles, Heitor, ou mesmo a libertação de Dido, não são opções para Eneias, que resiste, pois está ciente de que é o amparo e a esperança daqueles que necessitam dele para sobreviver.
Digno de imitação e inspiração para outros poetas, como Dante, John Milton e Camões, Virgílio foi se tornando mais do que um poeta. Como disse T.S. Eliot, ele adquire a centralidade do mundo clássico, pois assim como Eneias está para Roma, Roma está para a Europa, e a cultura romana, ressignificada por Virgílio, se espalha por todo o continente e mais além. Sua descrição do reino dos mortos é uma prova de sua linguagem e sabedoria elevadas, adquirindo, graças a Dante e, mais recentemente, Hermann Broch, o papel de poeta, profeta e guia, um personagem histórico e mítico, assim como seu herói.