Henrique 29/04/2014
Análise SEM spoiler
Antes de tudo, duas notas essenciais:
I. É um daqueles livros vivos que, conforme é lido, vai selecionando um apanhado de emoções diretamente da mente do leitor. Feito isso, o livro, com mãos como as de ninguém, guia o leitor à descobertas que colocam diante dele toda sorte de crenças e ideias que ele possui e o leva a questionar a própria essência de sua existência e seu código moral.
II. É um daqueles autores que não podem ser equiparados a outros, que não pode mais ser encontrado e ao qual só podemos recorrer por meio do que deixou quando se foi, que nos leva para o núcleo do ser e do existir.
Sobre a Obra
Durante o período que ficou conhecido como Guerra Mundial Terminus, uma investida nuclear traz à tona um cenário pós-apocalíptico no qual grande parte da população de seres vivos foram mortalmente afetados pela radiação, restando muito poucos.
Para proteger a raça humana da extinção, a ONU incentiva a emigração para colônias fora do planeta Terra, especificamente para Marte. Para encorajar as pessoas a emigrarem, foram criados os androides-serviçais que estão à disposição dos que decidem emigrar. Com o tempo, por serem feitos de material biológico e serem periodicamente otimizados, os "andros" tornarem-se visivelmente quase indistinguíveis do ser humano e com uma memória assustadoramente "humana".
A maior parte das pessoas que decidiram viver na Terra, mesmo com a constante poeira radioativa que "cai do céu", vivem em cidades desordenadas e decadentes, sempre passíveis de adoecerem pela radiação. Os animais são escassos e, por ser uma atitude socialmente vista como incentivo à empatia e agregadora de status, muitos adquirem animais a altos preços. Aqueles que não podem dispor desse luxo, optam pelos animais sintéticos, bastante verossímeis e consideravelmente baratos, podendo assim manterem um status de fachada.
Na trama principal, temos Rick Deckard, um caçador de androides por recompensa, que precisa capturar 6 androides do modelo Nexus-6, última geração, que como muitos androides fugitivos, estão se passando por seres humanos no planeta Terra. O que deveria ser uma caçada rotineira, se transforma em uma experiência que coloca sua vida em risco e o leva a confrontar-se com questionamentos que ele sequer havia cogitado fazer. Em uma trama secundária, temos John Isidore, um homem considerado "especial" por possuir uma inteligência abaixo do considerado normal, sub-desenvolvida, mas que conseguiu um emprego em uma oficina para concertos de animais sintéticos e leva uma vida solitária, até que um novo e intrigante morador torna-se seu único vizinho.
Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? e sua Aplicação na Vida Real
+ O mundo precisa do Dick e de outros nomes novos
Dick é bom no que faz. Ele é responsável por aqueles livros que, mesmo tendo uma lista imensa de livros para ler até o fim da vida, nos fazem prometer relê-los.
E precisamos de homens e mulheres como o Dick, e por "como o Dick" não estou dizendo "iguais ao Dick" e sim "tão bons naquilo que fazem quanto o Dick era no que fazia". Um autor ou autora que escreve chick-lit, por exemplo, pode ou não ser bom em fazer o que faz. Nesse caso, eu citaria o livro O Diabo Veste Prada, um chick-lit que põe outros no chinelo pela qualidade da trama e personagens, que não te dão aquilo que você espera, mas vem acompanhados com alta dose de fator surpresa, sendo divertido e transmitindo valores ao mesmo tempo.
Seja um Young Adult, infanto-juvenil, terror, fantasia, sci-fi, HQ, mangá, auto-ajuda, biografia ou qualquer outro segmento, o que fará com que o resultado final valha a pena ou agregue valores é o fator "dedicação", que vai desde uma avaliação do próprio autor daquilo que ele pretende e do preparo necessário para fazer com que seu investimento transforme-se no seu melhor, sem se preocupar com a demanda ou com o que está em voga, mas com o "tornar-se bom no que faz".
+ Sobre criar ovelhas elétricas, ficção e a próxima geração
- Ovelhas Elétricas
Somos bombardeados, todos os dias e de todos os lados, por "ovelhas elétricas", acompanhadas com promessas de conforto, felicidade, satisfação. A mídia nos diz que se usarmos isso, ingerirmos aquilo e dirigirmos tal veículo ou adquirirmos o mais novo lançamento e a mais recente promoção, seremos felizes. Mas, a mídia precisa que você acredite nisso, que dependa desses artigos, afinal são o que a mantém de pé. É aí que entra o senso crítico, indispensável nos dias que se desenrolam, onde viver em sociedade está se tornando cada vez mais off-line.
Um dos elementos que fazem com que os indivíduos humanos sejam sociáveis entre si, é o senso que temos do sofrimento e das necessidades do outro. A capacidade quase mágica de sentir o que o outro sente ao tomar conhecimento de sua dor ou de sua alegria, mesmo sem conhecê-lo. Numa síntese, o poder de estar no mesmo lugar emocional em que se encontra o outro ao ficarmos ciente deste "lugar".
Estamos vivendo, literalmente, em um BUM! tecnológico. Essa expansão é tão gigantesca e onipresente, que comer, dormir ou se exercitar são postos em segundo plano (ou em plano algum), ainda que sejam necessidades, inerentes à fisiologia humana. A saúde física e mental são depositadas no altar da satisfação imediata, da diversão sem medidas e do ganho fácil. As crianças e os jovens estudantes já não estão ansiosos por encontrar este ou aquele colega de classe, mas em abandonar a classe para encontrar uma infinidade de "amigos" virtuais e, ainda que estejam fisicamente "desconectados", estão mental e emocionalmente conectados, pois o que ocorre durante essas conexões estende-se para os diálogos que desenvolvem com outros e a experiência extra-virtual são, na verdade, uma extensão da mesma. Um círculo perigosamente vicioso se considerarmos que eles serão os adultos "responsáveis" pela próxima geração.
- Ficção e Empatia
Uma pesquisa feita recentemente a respeito do papel da literatura de ficção na vida das pessoas aponta, como o maior dos benefícios que a mesma pode fornecer, o aumento e aperfeiçoamento da empatia.
"A ficção é uma simulação do mundo social que nos permite experimentar (ao menos por meio da imaginação [de um modo emocionalmente real]) uma variedade de circunstâncias sociais com diferentes tipos de pessoas que nós podemos encontrar no cotidiano", diz o psicólogo cognitivo Dr. Keith Oatley. Temos, na literatura, um verdadeiro campo de simulação para diversas ocasiões da vida cotidiana, acessível à crianças, jovens e adultos.
- A Geração que está Chegando
Vejo o futuro sob uma perspectiva bastante pessimista, adultos infantilizados, emocionalmente incapazes, frágeis, violentos, covardes, imaturos, incapazes de conectarem-se com a realidade sem a muleta tecnológica. Vejo um futuro de pessoas dependentes da tecnologia, escravos dela. É para esse futuro caótico que apontam as evidências, um futuro onde "ovelhas elétricas" estão à venda por um preço mais acessível e que, cedo ou tarde, vão manifestar algum defeito, talvez, irreparável.
+ Humanos entre androides: sobre como a sociedade pode drenar nossa empatia
É assim que me sinto, um humano entre androides. É uma sensação que quero cultivar até o fim, quero viver e morrer como humano, não como um autômato.
Na obra em questão, em um mundo que acabara de enfrentar o caos que dizimou diversas formas de vida, incluindo a de seres humanos, a humanidade ainda encontra espaço para banalidades, como viver de aparências, por exemplo. Mas, como Dick nos faz enxergar, o ser humano tende a tomar decisões erradas, desde aquelas que levaram a uma guerra nuclear de proporções universais, àquelas que visam subjugar uma classe por não possuir isso ou aquilo, geralmente, envolvendo dinheiro. A bem da verdade é que, provavelmente, isso sempre vá existir. As pessoas estão sempre buscando modelos para seguir e, mais uma vez, tendem a encontrar moldes errados, parcos, que dão à vida um cheiro de morte.
Em Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? temos uma sociedade caótica tentando sobreviver em um mundo caótico, e esse caos deveria despertar a empatia, aproximar os seres humanos, ao invés disso, a ganância continua a imperar, o que pode ser visto na produção de animais elétricos (usados para manter as aparências, já que é símbolo de status na sociedade possuir um animal) e a produção de androides, que apesar do propósito inicial, encorajam pessoas a emigrarem para preservar a espécie humana, passam a ser criados tendo como propósito o lucro, mesmo depois de os androides se tornarem potencialmente perigosos para a humanidade. Mais uma vez, a estupidez se manifestando na forma de ganância, o monstro que possivelmente levará a raça humana à extinção tal qual nós já extinguimos outras formas de vida.
Não sou, nem de longe, um "anti-tecnologia", mas não sou surdo aos ruídos que revelam o quanto o avanço tecnológico está desumanizando as pessoas, mesmo aquelas que vieram de uma época mais sadia, mais "tete-a-tete, face-a-face". Admiro muitos dos avanços científicos que estamos presenciando e as conquistas que estão sendo feitas, pessoas e grupos de pessoas indo em busca dos seus direitos, por justiça, por igualdade, por um mundo onde preconceitos sejam tão asquerosos quanto chorume. Em contra-partida, fico estarrecido com outros aspectos da sociedade, que parecem varrer o respeito, o apreço ao conhecimento, à cidadania. Não tenho TV em casa, por opção, por isso não acompanho telejornais, também por opção. No entanto, faço uso da internet para manter-me atualizado quanto aos acontecimentos, é muito mais fácil peneirar o que se vê ou lê e determinar fontes confiáveis. Mas, ainda que não dispusesse desse aparato, eu mesmo vivencio as consequências de uma sociedade onde o sexo e o futebol são supervalorizados e infantilmente utilizados, para não dizer primitivamente. Uma demonstração disso no Brasil é a baixíssima audiência que possui a TV Cultura, considerada a segunda maior emissora do mundo em termos de qualidade porém, com pouquíssima audiência. Por outro lado, a rede Globo é a segunda maior emissora do mundo em audiência, mas se considerarmos a "qualidade"... Sendo irônico, talvez isso se deva ao fato de a TV cultura não enfatizar o futebol e banalizar o sexo. Bem, não vou entrar nessas terras.
Precisamos estar atentos a um dos atributos mais importantes que possuímos: a empatia. Ela nos diferencia das máquinas, dos avatares e faz parte do que nos define como seres humanos, portanto, não deixemos que os interesses de grandes empresas definam o que somos.
Por fim...
Há outros aspectos a serem avaliados em Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, como a questão da importância de estarmos cientes de nossa humanidade, a fundamentalidade que está encerrada nos questionamentos que precisamos e fazemos, nos valores que determinamos como relevantes, no relacionamento que mantemos com o ambiente, no quanto estamos dispostos a deixar que a sociedade e seus arquétipos determinem como devemos viver e o que nos faz felizes. Recomendo a leitura desse livro e, sem dúvida, será uma boa leitura.
- Philip K. Dick é considerado o melhor autor de ficção científica do mundo.
- Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? é mais conhecido por ter inspirado o filme Blade Runner - O Caçador de Androides.
Por Henrique Magalhães
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