livrosdarach 12/02/2024
A introdução de um clássico
Este livro foi meu favorito quando eu tinha uns 9 anos. Lembro que enfiei na cabeça que queria ler Dom Quixote, e ganhei esta versão. E eu tinha certeza que era o livro original por muitos anos, até crescer e descobrir que li uma versão adaptada para crianças. Que bom que eu fiz isso! Que bom que um adulto me entregou este livro de presente.
Agora, adulta e professora, resolvi voltar ao livro para usá-lo como livro paradidático com uma das minhas turmas de Língua Portuguesa. É a partir dessa visão que escrevo. É um ótimo livro para introduzir os famosos personagens de Miguel de Cervantes e todo o universo dos livros de cavalaria. Há uma nota no início para os adultos, explicando as adaptações que foram feitas para que a história fizesse sentido aos pequenos. A mais importante acredito que seja contextualizar o universo de Dom Quixote para os novos leitores, fazendo assim com que haja uma aproximação entre os diferentes períodos. As ilustrações presentes em todas as páginas são lindas e também ajudam a criar a ambientação do mundo de Cervantes, tão diferente dos dias em que vivemos.
Para mim, foi uma leitura mega rápida e divertida (muito bom revisitar quase 20 anos depois o livro que já foi meu favorito). A linguagem é fácil e fluida, atrativa para crianças e pré-adolescentes. Cenas e desenrolares bem engraçados, com situações um pouco absurdas dignas de Dom Quixote, como todo bom romance de cavalaria precisa. Em muitas, consegui ver meus alunos morrendo de rir e interagindo bem com a história, provavelmente curiosos para saber o que aconteceria a seguir ou abismados com a loucura do cavaleiro.
Ainda assim, dois pontos me chamaram a atenção e merecem uma reflexão: a descrição de Dulcinéia e uma cena bem machista. O primeiro é reforçado ao longo do livro, com Dulcinéia sendo estereotipada com formas de corpo padrões, pele branca como a neve e perfeita como uma princesa, enquanto Aldonza Lourenzo é o completo oposto, com ilustrações deixando a comparação bem visual. A minha reflexão com essas descrições está em saber como trabalhar a loucura de Quixote (que ignora o real e cria algo "perfeito" para sua amada), pois sei que desde cedo algumas alunas já apresentam questões com as próprias imagens e corpos, e isso pode ser um fator disparador em suas percepções. Ao mesmo tempo, o quanto isso pode reforçar a visão masculina sobre o corpo feminino. O segundo ponto apareceu quando Dom Quixote se envolve, sem querer, em uma briga por causa de ciúme: um moço, enciumado da mulher que se deitou na mesma cama que Quixote, na venda em que pararam para dormir, coloca toda a culpa nela por estar "de graça" com outro homem. O leitor sabe que é uma situação absurda, em que tudo dá errado como forma de criar uma confusão, mas o moço é descrito como "morto de ciúmes" e sai correndo para "dar uns bons tapas na moça", que fica como culpada da situação. É um desenrolar de cena que não cai bem nos dias e nem nos leitores atuais.
Claro, esses dois acontecimentos não fazem com que o livro seja péssimo, mas foram o que me fizeram tirar uma estrela. Como mencionado, também não acho que devam fazer com que o livro não seja trabalhado na escola, mas as abordagens destes tópicos merecem uma atenção, um cuidado para não serem banalizados. A intenção de "Era uma vez Dom Quixote" é formar os pequenos leitores com clássicos da literatura, mas também pode muito bem servir para ajudar a os formar críticos em situações sociais.