Leonardo 22/04/2014
Boa vontade, mas história muito fraca
Zé Lorota é um cabra bem mentiroso, todo mundo sabe. Gosta de contar vantagem e sempre inventa, exagera. É um sujeito hiperbólico. Ele vivia dizendo que tinha uma grande história pra contar, uma história cheia de emoções e reviravoltas. Só que ninguém nunca dava bola pra ele. Aonde ele chegava, tentava contar a história, mas não emplacava. Logo alguém desconversava, puxava assunto de política, de jogo, perguntava se ia chover Num sábado, num churrasco, quando ele menos esperava, a oportunidade apareceu. E era mais do que ele podia querer: estavam ali o prefeito, o promotor, o juiz, o padre, todo mundo da cidade que de fato importava. Zé Lorota estava comendo uma coxa de galinha com farofa quando o prefeito o intimou a contar a sua famosa história. Ele se engasgou um pouco de emoção e seu coração disparou. Tomou um copo de cerveja para limpar a garganta e começou a narrar a inigualável aventura nunca antes contada, nem por inteiro nem pela metade do homem que entrou por acaso na cabeça de um santo (uma cabeça gigante de uma estátua de Santo Antonio) e descobriu que podia ouvir as preces das piedosas mulheres daquela cidade suplicando a intervenção do santo para conseguirem casar. O homem teve então a brilhante ideia de ficar rico com aquele estranho dom, e as suas ações resultaram em uma grande confusão que mudou a história da cidade. Quando Zé Lorota abriu a boca para dar início à saga, um grave problema se materializou, trazendo, de imediato, outro a reboque, tão grave quanto o primeiro:
Primeiro problema: Zé Lorota não tinha uma história. Nunca teve. Era tudo lorota. Ele tinha uma ideia homem encontra cabeça de santo e descobre que pode ouvir as preces das mulheres da cidade. Só isso. Como ele nunca havia tido que contar a história antes, ainda não havia parado para pensar que ele precisaria desenvolver seu conto para fazer jus a toda a propaganda que ele próprio havia feito acerca dos méritos da narrativa.
Segundo problema: Zé Lorota era um sujeito de raciocínio rápido, ah, isso ele era. Isso é um problema? É, porque você já deve ter adivinhado o que ele fez em seguida. Ele não apenas tinha o raciocínio rápido. Era muito vaidoso. Quando disse as primeiras palavras (Tudo começou lá no sertão, muito tempo atrás), o problema da falta da história apareceu, mas foi descartado em menos de um segundo pelo seguinte pensamento: Eu improviso. Vai dar certo.
E foi assim que Zé Lorota contou a sua história. Muito, muito rapidamente, ele criou um passado para Samuel, o personagem principal (ele estava indo a Candeias, a cidade onde ficava a cabeça do santo, em busca do seu pai e de sua avó, para pagar a promessa feita a sua mãe no leito de morte); criou um passado para a cidade (uma cidade moribunda, com a maioria das casas abandonadas, tudo fruto do que se considerava uma grave maldição a cabeça do santo, feita para coroar uma gigantesca estátua de Santo Antonio, para rivalizar com a do Padre Cícero de Juazeiro do Norte, não pode ser colocada no corpo, o que sentenciou o santo a permanecer decapitado.); criou alguns personagens, muita ação.
No começo, tudo parecia ir dando certo. Ele foi abrindo estradas, caminhos, encruzilhadas, sem se preocupar em ligá-las a nada, afinal, estava no começo da história, e se assombrava com a sua própria capacidade de improvisação. Na mesa do churrasco, as pessoas se aglomeravam, atraídas pelo jeito teatral com que Zé Lorota contava sua história.
Zé Lorota foi ficando envaidecido com seus próprios êxitos, e ousava cada vez mais. Começaram a aparecer então pontas soltas na sua história, mas ele não se importava. O ritmo da narrativa foi ficando insano, de tantos fatos que ele empurrava goela abaixo. Uma hora era um radialista que aparecia, depois um coveiro, depois uma velha com poderes sobrenaturais. Não satisfeito com isso, Zé Lorota inventou um cinema na cidade, um prefeito corrupto (se bem que isso não é coisa muito inventada), milhões desviados, direitos de imagem vendidos à CNN, repórteres, bombas, um amor para Samuel, pessoas que passaram quinze anos escondidas e mais, e mais, e mais. A imaginação de Zé Lorota não tinha limites. E quanto mais ele inventava, mais difícil ficava terminar a história. Quanto mais ele inventava, mais gente se aglomerava e maior a expectativa justamente pelo modo como tudo aquilo iria encontrar seu termo. Zé Lorota estava nervoso, com medo de um grande fracasso. Juntou ar nos pulmões e, num fôlego só, lembrando-se de todos os cordéis que já havia lido e das novelas que havia visto, terminou a história da melhor maneira que pôde, com todos os clichês possíveis.
Quando disse e assim termina a história da cabeça do santo, encheu um copo grande de cerveja e bebeu inteiro, de uma só vez, enquanto sondava, com o canto do olho, as reações dos presentes. O prefeito teria gostado? E o juiz? O promotor? A mulher do prefeito?
Essa historinha, caro leitor, é um resumo da minha impressão ao terminar de ler A cabeça do santo, de Socorro Acioli. Quando terminei a leitura, fui ler as orelhas do livro e os agradecimentos e senti-me um pouco intimidado: a autora é doutora em estudos literários e fez um curso chamado Como contar um conto com Gabriel García Márquez em pessoa, em 2006, em Cuba. Mais do que isso, nas palavras da própria autora, as primeiras ideias do romance foram escritas justamente para o curso, e Gabriel García Márquez não só aprovou o projeto, como o incentivou, entusiasmado. Ainda nos agradecimentos, a autora expressa gratidão a três professores que avaliaram o trabalho (o romance, presumo) durante o Exame de Qualificação do seu doutorado em Estudos de Literatura.
Quando li isso, pensei: Peraí! Foi este mesmo livro que acabei de ler que foi avaliado (e aprovado) por uma banca de doutores? Porque o elogio de Márquez à ideia é compreensível: a ideia do romance é ótima. Um homem que ouve orações de mulheres pedindo maridos pode render uma excelente história. Foi justamente por conta deste mote que escolhi ler este livro. Mas a autora não foi feliz em transformar a ideia num livro. Ou foi? Meu senso estético travou enquanto eu lia esta obra, que não pude perceber seu valor?
Como ilustrei na história do Zé Lorota, os fatos se sucedem numa velocidade espantosa, como se a autora fosse escrevendo tudo que lhe viesse a cabeça, sem parar para pensar se aquilo se encaixaria na narrativa ou não. Não vou analisar cada aspecto falho do livro, mas acredito que vale a pena ressaltar alguns:
Candeia era quase nada. Não mais que vinte casas mortas, uma igrejinha velha, um resto de praça. Algumas construções nem sequer tinham telhado, outras, invadidas pelo mato, incompletas, sem paredes. Nem o ar tinha esperança de ter vento. Era custoso acreditar que morasse alguém naquele cemitério de gigantes.
Por conta da maldição do Santo Antonio, a cidade era o que se dizia acima. Eu, que sou do interior, e trabalho muito, muito mesmo, viajando e fiscalizando não apenas cidades pequenas do interior, mas pequenas povoações no interior destas pequenas cidades, consigo muito bem visualizar o que é um local com não mais que vinte casas. Para deixar bem claro, imagine uma rua com dez casas de um lado, dez casas do outro. Pronto. Aí está a cidade. Uma igrejinha no começo da rua. Um bar. Se vinte casas já não seriam suficientes para fazer uma cidade, imagine no caso específico de Candeia, em que as casas eram mortas e pouquíssimos eram os habitantes que ainda resistiam à maldição e permaneciam na cidade. Em outra parte do livro, a autora menciona que provavelmente apenas seis casas ainda eram habitadas. Aí comecei a fazer as contas: (1) a dona do bar, que tem um papel importante na trama; (2) a avó de Samuel; (3) Chico Coveiro, outro personagem importante; (4) Aécio Diniz, o radialista da cidade (sim, uma cidade com seis casas tem uma emissora de rádio que, pasmem, tinha, antes mesmo da chegada de Samuel e do surto casamenteiro que ocorreu na cidade, um programa especial sobre noivas); (5) Dona Rosa e seu moribundo marido, um casal citado no início da narrativa; (6) o funcionário encarregado de manter limpa a casa do prefeito, que, naturalmente, não residia na cidade e aparecia lá uma vez por ano. Sem forçar muito a minha memória (que é ruim) nem consultar o livro, cheguei a seis casas necessariamente habitadas. Não sobrou ninguém na cidade? Claro que sobrou, porque dentro da cabeça do santo Samuel conseguia distinguir pelo menos cinco orações, uma delas da filha da dona do bar. Sobravam, portanto, quatro outras moças querendo casar que não residiam em nenhuma das casas acima citadas.
Mas não é só isso. Depois que a cidade começa a fervilhar por conta dos casamentos que começam a ocorrer graças à intervenção de Samuel, um dos casais resolve simplesmente abrir um cinema! Qual o impacto disso na trama? Nenhum! Mas o cinema faz sucesso e vive lotado todos os dias, exibindo, dentre outros filmes, dia sim, dia não, Casablanca. Sim, o filme clássico, um dos mais amados da história do cinema. Peraí mais uma vez! Minha cidade natal, Paripiranga, tem quase trinta mil habitantes e o dono da faculdade de lá (sim, uma faculdade grande com vários cursos e com muitos, muitos alunos da região) abriu um cinema. Preço baixo, mas sucesso zero. Não houve público. Não houve interesse. Claro, sei que estou sendo um tantinho anacrônico ao comparar realidades distintas, mas uma cidade com seis casas habitadas, cujo movimento naquela época consistia basicamente em ser caminho obrigatório para romeiros rumo a Canindé, lotar sessões e mais sessões de cinema isso sim poderia ser considerado um milagre de Santo Antonio.
Talvez estes exemplos isolados não forneçam elementos suficientes para que você, leitor tenha uma ideia de como é confuso o livro. A Cabeça do Santo não funciona enquanto narrativa. Sabem aquele velho recurso de revelar que aquele personagem que todos julgavam morto há anos (mais de vinte anos, num dos casos) está vivo e esteve escondido, de maneira completamente improvável, pertinho de todos todo aquele tempo? Pois A cabeça do santo, com pequeníssimas variações, utiliza-se do mesmo expediente não apenas uma, mas duas vezes! Mais uma vez: para uma cidade com seis casas habitadas isso soa um tanto estranho, não é?
Após a leitura eu fiquei matutando, matutando, em busca de um sentido que eu não houvesse percebido para toda essa narração hiperbólica. Primeiro, tentei visualizar o livro como um filme, eu assistindo ao lado dos meus irmãos. Só o que me vinha à cabeça a cada vez que uma situação absurda daquelas se sucedia era nós todos exclamando em uníssono: Que filme ruim!
Aí veio outra ideia, essa com um pouco mais de lógica: este livro é a transcrição em prosa de um daqueles livretos de cordel! Para quem já leu, sabe como o cordel é repleto de histórias absurdas, a maioria das vezes sem pé nem cabeça (o que não lhes tira o mérito, deixo claro). A história do cordel tem uma relação próxima com a dos repentes, também tradicionais no nordeste. Há uma tradição oral muito forte, bem como a presença do improviso. Faz parte do objetivo do cordel encantar o leitor também com estas histórias absurdas, já que elas funcionam mais ou menos como fábulas.
Esta foi a única chave de leitura do romance que me fez ver alguma lógica na forma como ele foi contado. Mas não é suficiente para justificá-lo. Se o objetivo da autora foi escrever um cordel em prosa, ela não foi feliz. Falta fluidez na história, faltam personagens carismáticos (algo que não comentarei de maneira mais aprofundada, mas que é lamentável: nenhum personagem é interessante, nenhum personagem é de verdade, todos são rasos e artificiais, inclusive e especialmente o próprio Samuel), falta uma prosa elegante e competente. Falta, em resumo (e sendo bem duro, eu sei), ter sido bem escrito para conquistar o leitor.
Minha Avaliação:
1 estrela em 5.
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