Sofia Dionísio 31/12/2023
A diversão de um narrador transparentemente não-confiável
A gente cresce ouvindo falar de Machado de Assis. Principalmente sobre Dom Casmurro. E muito se fala sobre o realismo, o narrador não-confiável, e a profundidade que isso traz para a obra. Mas eu não li Dom Casmurro, não ainda, e sei que muita gente também não leu. Eu tentei ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas foi uma narrativa que me perdeu bem rapidinho. Ainda pretendo tentar de novo, mas não posso negar que não me conquistou na primeira vez. A não-confiabilidade do narrador então sempre teve um ar de "grande segredo" para mim, de exigir uma leitura extra-atenta para identificar a história por trás da história, de ler o livro estando em guerra contra ele e seu narrador enganador e mentiroso, que tenta te manipular. Talvez seja uma falsa impressão, talvez Dom Casmurro não seja assim, ainda não sei. Mas Memorial de Aires definitivamente não é. Aires não é confiável não porque ele está em profunda negação ou porque tem malícia em suas palavras distorcidas, mas porque esse é seu diário, um diário que ele insiste em dizer que é descartável, um confidente impenetrável mas que, como qualquer diário, tem uma pretensão de um dia ser lido, ser compartilhado e, conforme ele envelhece e a morte se aproxima, o entendimento de que pode ser (e será) seu legado. No fim, o não-confiável é transparente, e é uma mistura de coisas que ele não quer admitir para si mesmo, e coisas que ele não quer admitir para nós, leitores, que manchariam sua imagem, mas ambas são fáceis de compreender, fáceis de ver além. E faz todo sentido com o personagem, um diplomata aposentado, tão acostumado à conciliação, uma vida de pôr panos quentes em tudo e não julgar (abertamente) ninguém.
Para além do narrador, a graça do livro é que é um livro de fofocas. Aires está aposentado e financeiramente confortável, e busca ocupar seus dias com visitas a amigos e família, sempre fuçando a vida dos outros e se fazendo de santo. E depois fofocando tudo com a irmã. Sim, o livro está longe de estar livre de profundidades, de "riqueza literária", é um dos últimos livros do Machado antes de sua morte e não é à toa que tive que ler para uma matéria de Literatura Brasileira na universidade, mas não adianta ser um clássico importante e profundo se não for divertido, e Memorial de Aires é muito divertido.