Paulo 06/09/2019
Cândido ou o Otimismo é uma obra clássica escrita por Voltaire, um dos filósofos alinhados a um movimento conhecido como Iluminismo. Um francês, nascido em 1694, na capital Paris e viveu até 1778. Alguns de seus principais trabalhos, além de Cândido ou o Otimismo, é o seu Dicionário Filosófico e o Tratado sobre a Tolerância. Filósofo muito crítico, suas ideias ajudaram a alimentar o barril de pólvora que foi a sociedade francesa pré-revolucionária. Dentre de sua obra, dois trabalhos se destacam por usarem da ficção para tratar de temas contemporâneos a ele: este que vamos falar hoje e o Zadig. O Iluminismo atuou em vários campos como a política, a economia, as artes, a literatura; criticava o Antigo Regime, o modelo absolutista, os privilégios das elites nobiliárquicas que em nada contribuíam para a sociedade. Na França, além de Voltaire, podemos destacar Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.
Voltaire faz uma crítica à sociedade das aparências. Isso é percebido através da personagem Cunegunda, o grande amor da vida de Cândido. Filha de um aristocrata, futura herdeira de uma casa com 51 quartos (mais tarde, 52), a ela só é permitido o casamento caso o noivo possua um dote digno de suas posses. A personagem acaba passando por poucas e boas ao longo da trama. Sua casa é atacada por invasores e ela é estuprada repetidamente até o momento em que é vendida como escrava. Ela passa pelas mãos de várias pessoas, dentre elas um padre e um judeu que se aproveitam e humilham-na. Quando Cândido a reencontra, ela é uma personagem destruída e desfigurada e mesmo assim ainda mantém um pouco desse espírito aristocrático.
Há uma inversão na forma como o autor apresenta seus personagens. Voltaire foge da fórmula maniqueísta do bem enfrentando o mal. Do cavaleiro nobre possuindo a melhor das virtudes. Na narrativa de Candido, o homem bom é um tolo e o homem honesto é o malandro. No primeiro caso, além de Cândido, podemos falar do nobre Cacambo, o ajudante do protagonista. Ele tenta ajudar seu mestre de todas as maneiras, mas acaba se tornando um escravo porque acredita nas pessoas. Quando pensávamos que Cacambo havia fugido com as riquezas do protagonista, ele, na verdade, havia caído vítima de traficantes de escravos. Já os honestos da narrativa são todos aproveitadores. A cena de Cândido negociando sua viagem de barco é impagável. Risível até. Ele oferece um valor absurdo para o capitão e este vai aumentando e aumentando o valor. E Cândido não retruca. Apenas aceita passivamente as maldades que lhe são feitas.
Os estereótipos também são muito frequentes na narrativa do autor. É comum vermos judeus violentos e padres tarados. Os dois judeus que aparecem na narrativa são coléricos e irascíveis, partindo para a agressão em um piscar de olhos. No caso dos padres há uma crítica bem transparente em relação à Igreja. O padre que aparece na narrativa nada tinha de virtuoso, se aproveitando sexualmente de Cunegunda. Há até uma insinuação de homossexualismo (dizendo que o padre atraía coroinhas para os seus aposentos). Isso não significa de forma alguma que Cândido não seja violento. Ele mata o irmão de Cunegunda em um piscar de olhos.
Não tem como não falarmos sobre Pangloss, o filósofo amigo de Cândido que aparece no começo e depois é ressuscitado no final da narrativa. Pangloss funciona como uma maneira do autor tentar fazer críticas ao socialismo rousseauniano. Ainda na proposta do "melhor dos mundos possíveis", Voltaire avança criticando a ideia de que os homens em estado natural são livres do mal. Cândido cita Pangloss enquanto viaja para a América do Sul e imagina que lá estaria uma espécie de terra perfeita onde as pessoas teriam tudo e não precisariam matar e explorar o próximo. Entretanto, logo em seguida vemos uma cena bizarra de mulheres nuas fugindo de macacos. Sim, é isso mesmo: zoofilia. Ou seja, mulheres na América Hispânica se relacionando com macacos. A sátira é feita em cima de Rousseau que dizia que os macacos eram os animais mais próximos do homem. Algo muito criticado pelo autor. Todo este trecho que se passa no Novo Mundo busca apresentar a lenda de Eldorado, a mítica cidade cujos prédios seriam feitos de ouro maciço e onde as pessoas viveriam em uma felicidade absoluta. Os habitantes de Eldorado são tratados como tolos pelo autor e oferecem riquezas em troca de conhecer a religião do "verdadeiro Deus".
Mais para a frente na narrativa, aparece o personagem Martinho, um eterno pessimista. Alguém que vai encontrar defeitos em todas as coisas, que entende que o mundo caminha para a decadência. Acho engraçado porque daria para imaginarmos que ele serviria como um espelho para as crenças de Voltaire, mas isso nem sempre acontece. Mas, as críticas que ele faz sobre o estado de coisas na Europa, são sim as crenças do autor. Assassinos fazendo parte da folha de pagamento das cortes, em uma clara referência à política dos condottieri na Itália. Cidades que desejavam o mal às cidades vizinhas, também em uma clara crítica ao Sacro Império e às cidades italianas. Uma crítica à maneira como os camponeses criticavam e humilhavam os nobres a quem se submetem. É preciso deixar bem claro que Voltaire vem de uma família com posses. Não é necessariamente alguém desamparado.
As críticas do autor também se voltam às ciências. Ele fez parte de uma sociedade de ciências, mas tece críticas em relação a pesquisas consideradas inférteis e sem propósito. Na visão dele, as pesquisas precisam se focar no engrandecimento do homem. Ele usa o caso curioso da ovelha vermelha que Cândido recebeu em Eldorado. Mostra toda a tolice por trás da curiosidade científica em cima do pobre animal. Fica também a curiosidade de que uma terra mítica como Eldorado é mostrada como o lugar mais justo da Terra. Ou seja, Voltaire mostra o quanto ele está insatisfeito com a maneira como a justiça funcionava na França, permitindo as injustiças ocorrerem soltas pela sociedade. Ele credita isso à decadência da sociedade europeia.
Quase no final, temos um ótimo diálogo entre Martinho, Cândido e Cunegunda. Será que deveremos ter uma vida inquieta e conturbada ou uma estabilidade monótona? O que nos faz nos desenvolver como pessoas? Toda a inquietude de Cândido diante das transformações e da injustiça apenas o levou a sofrer e não ganhar nada em troca por isso. No entanto, os habitantes de Eldorado vivem uma vida estável e monótona podendo ser felizes. Esse é um questionamento que o autor não responde.
O final do livro é lacônico e estúpido no sentido de que não passa de mais uma crítica veemente do autor a esse otimismo exacerbado de Leibniz. Oras, se tanta coisa ruim aconteceu a um homem bom como Cândido, como poderíamos afirmar estar em um mundo desprovido de maldade? Como dizer que este é o melhor mundo possível? É esse o ponto final da jornada. Todos os personagens acabam mal: Cândido perdeu tudo, Cunegunda se tornou feia e rabugenta, Pangloss morreu, ressuscitou e nunca obteve o reconhecimento que queria, Cacambo trabalha demais e reclama de seu destino. O único que continua tendo a mesma personalidade é o pessimista Martinho.
Cândido é um livro interessante e que suscita muitas reflexões. Vale a pena a leitura para entendermos algumas das críticas feitas pelo Iluminismo à sociedade vigente. E é uma excelente sátira com ótimas tiradas do autor. Ele não se exime de criar situações absurdas para exemplificar suas ideias.
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