spoiler visualizarJulia 27/06/2020
A poesia da vida*
O livro “O que é vida?” de autoria da bióloga Lynn Margulis e do divulgador científico Dorion Sagan, repete o título do livro publicado por Erwin Schrodinger em 1944, em uma tentativa de responder à pergunta em questão baseando-se em recentes avanços científicos. Dividido em nove capítulos, o livro traz uma abordagem ampla da vida, indo desde conceitos básicos até sua provável origem e evolução.
O capítulo inicial, intitulado de “Vida: O Eterno Enigma” foca em uma abordagem mais conceitual da vida. Trazendo conceitos antagonistas como o mecanicismo e o animismo, os autores demonstram a evolução da ideia da mecânica da vida. Em seguida somos introduzidos a uma análise mais física e química, com o conceito dos seres vivos como sistemas autopoéticos, ou seja, que constroem si mesmo através do metabolismo, se autossustentam. Através da realização de seu metabolismo, os seres vivos foram capazes de alterar a atmosfera terrestre e, por conta disso, não somente a vida é exposta como autopoética, mas todo o planeta, com sua regulação sendo fruto da interação dos indivíduos da Terra durante éons de convivência.
O segundo capítulo, nomeado de “Almas Perdidas”, expõe uma explanação da filosofia cartesiana de Descartes, onde somente o homem fazia parte de Deus, pois só ele possuía alma. Essa concepção levou a um exame desenfreado da natureza, que acabou por impulsionar o avanço científico. Todavia, temos como o ponto principal do capítulo a apresentação dos pensamentos antagonistas de Vernadsky e Lovelock. Vernadsky retratava a vida como uma matéria viva, que atuava na crosta terrestre, a modificando e incorporando. Distintamente, Lovelock considerava a Terra como um organismo vivo, autorregulada pelo comportamento dos diversos organismos, produzindo uma fisiologia planetária. A essa Terra viva deu o nome de Gaia.
No capítulo seguinte, intitulado de “Era Uma Vez Um Planeta” somos introduzidos à origem da vida. Partindo de uma breve explicação sobre o desenvolvimento da Terra, os autores perpassam por ideias como a panspermia e a geração espontânea, fazendo um apanhado da evolução do pensamento da origem da vida. Além de nos contemplar com uma linha temporal indo desde a origem do sistema Terra-Lua até o aparecimento dos ancestrais do homem, os autores nos fazem um relato dos experimentos que investigavam a origem da vida, iniciados por Oparin, até os relativamente mais recentes, que trazem a noção do RNA como a molécula capaz de se autorreplicar e que, envolta por gotículas de óleo, iniciou o trajeto para a autopoese.
No capítulo quatro, de nome “Mestres da Biosfera”, a abordagem foca no primeiro dos cinco reinos a surgir: O bacteriano. Sempre associadas a agentes patológicos, as bactérias são ofuscadas no que se refere à sua grande importância biológica, como no caso do surgimento dos plastos e das mitocôndrias. Sendo os organismos com a maior diversidade metabólica da Terra, são capazes de compartilhar suas características através de uma particular troca de material genético, a conjugação. Foram os primeiros seres autótrofos e, com as cianobactérias, foram capazes de alterar a atmosfera terrestre, a tornando rica em O2, levando, indiretamente, ao aparecimento dos organismos aeróbicos.
No capítulo subsequente, denominado “Fusões Permanentes”, somos expostos ao resultado da integração de simbiontes bacterianos: a origem da célula eucariótica e de seu primeiro reino, os Protoctistas. Além dos eventos de endossimbiose que originaram as mitocôndrias e os plastídios, outro evento, ainda mais anterior, teria dado origem às estruturas celulares responsáveis pela locomoção e separação cromossômica durante a divisão celular. Entretanto, alheia a endossimbiose, a origem da célula diploide ocorreu através de um evento de canibalismo fracassado, tendo como consequência a fusão de dois organismos iguais, criando uma célula capacitada a sofrer meiose.
O capítulo seis, nomeado de “Os assombrosos animais”, concentra-se nos animais. Surgidos antes dos fungos e das plantas, são, atualmente, o grupo com a maior quantidade de seres vivos. Originados dos Protoctistas, são diferenciados dos outros organismos pela formação da blástula em seu estágio embrionário. Relatando os comportamentos excepcionais e as complexas relações sociais de alguns animais, os autores expõem suas capacidades cerebrais associadas à consciência (que não se restringe aos humanos) e como estes influenciam nas atividades da biosfera.
No capítulo sete, “A Carne da Terra”, somos apresentados ao reino dos fungos. Os fungos são eucariontes versáteis, incapazes de formar embriões e que possuem um inestimável valor para a indústria humana e para o metabolismo global devido à decomposição. São capazes de se relacionar intimamente a outros organismos, seja por simbiose, como liquens e micorrizas, ou por mutualismo, como a fascinante relação que possuem com as formigas do gênero Atta. Pela colonização e modificação do ambiente terrestre, permitiram o desenvolvimento de diversos outros organismos.
No capítulo seguinte, “A Transmutação da Luz Solar” o último dos reinos a surgir se torna o enfoque principal: O reino das plantas. Como seres capazes de construir a si mesmos através da conversão da luz solar, as plantas são os alicerces da biosfera e da economia humana. Caracterizadas por alternarem entre uma fase haploide e uma fase diploide no seu ciclo de vida, as plantas diferem dos animais por produzirem esporos, e não gametas, como resultado da meiose. Tendo a lignina como principal parceira, conquistaram o ambiente terrestre, desenvolveram sementes, flores e frutos, se integrando e usando os outros organismos terrestres às suas necessidades nutricionais e de dispersão.
E afinal, o que é a vida? No último capítulo, “Sinfonia Senciente”, vemos que a vida é aquilo que essencialmente se produz e se reproduz, mas não se restringe só a isso. Percepção, escolha e sensação também são características da vida e, de acordo com Samuel Butler, a vida não somente sofre a ação da Seleção Natural, ela também toma suas decisões, independente de ser uma bactéria, uma planta ou um animal. Resumindo o que é vida sobre a ótica dos diversos reinos, os autores chegam à conclusão de que a vida supera a si mesma, e que qualquer definição se escapa.
Através de uma abordagem que se aproxima do leitor, Margulis e Sagan trazem um texto repleto de informações e referências, retratando a vida de uma forma cientifica, mas também poética. No entanto, perde um pouco do seu propósito de divulgação cientifica, visto que, com abordagens que muitas vezes necessitam de conhecimentos prévios para a total compreensão, o livro, no geral, não se destina ao público mais leigo. Contudo, é um livro com um conteúdo indispensável àqueles curiosos da vida.
*Sou bióloga e escrevi essa resenha/resumo para uma disciplina, ainda na graduação. Embora ela esteja grande e contenha bastante spoilers, ela reflete muito bem as impressões que tive durante a leitura.