Jess.Carmo 04/12/2023
A ética pensa uma prática boa e uma vida feliz
Para Aristóteles, a ética lida com a realidade do convívio. O objeto, meta e pressuposto da ética é a prática boa. Lembrando que, para Aristóteles, a ciência política é a arte de governar, a arte de produzir o Bem. Dessa forma, a ética parte da política, está subordinada a ela, já que o objeto dela é o Bem. A ética pensa uma prática boa e uma vida feliz. A Ciência política é mais abrangente, portanto, a ética individual é subordinada a ela; porém, o critério da política é a felicidade dos indivíduos no estado; para essa, a convivência na polis é decisiva, mas o indivíduo continua o sujeito da felicidade (não: vontade geral etc.). Por isso, o político deve estudar a alma (individual) humana.
A ética é a teoria da moral, uma reflexão sobre a moral. Podemos falar de duas grandes vertentes da ética, a ética descritiva, que descreve a moral, que diz como ela é, e a ética normativa, que reflete sobre a moral e diz se uma moral é boa ou não; ou seja, diz como ela deve ser. Também poderíamos falar de uma meta-ética, que descreve a ética normativa e descritiva, mas acho que isso não é tão importante para a nossa proposta. Vale lembrar que a primeira, a ética descritiva, se arvora a partir de certa pretensão de neutralidade. A segunda, a ética normativa, julga as morais, desenvolve critérios para elas.
Essa ética normativa é extremamente importante para ir contra a certa falácia naturalista que diz que porque uma moral sempre foi assim ela sempre vai ser dessa forma. A ética normativa, ao refletir sobre a moral a partir de como as coisas devem ser, julgando se a moral vigente é boa ou ruim, ela pode prescrever novos valores e normas. Por exemplo, não é por que por toda história as mulheres se encarregaram dos cuidados que deve ser sempre assim. Ou seja, não é porque é assim que deverá ser sempre assim. Então, sempre quando alguém descreve alguma coisa ou uma ação, podemos perguntar: "assim é, mas também é bom assim?"
É importante destacar que essa diferenciação entre ética e moral não existia até a Modernidade.
A Ética, na teoria aristotélica, está dentro da filosofia prática, assim como a filosofia do direito e a filosofia política.
Acho que para a nossa proposta aqui, o mais importante seria acompanhar essa ética normativa. Existem 3 tipos de éticas normativas. Primeiro, a ética deontológica (Déon = dever), onde o importante é a forma da ação, dar às minhas ações a forma correta. Sua pergunta é a de "como devo agir". Segundo, a ética consequencialista, onde o importante é o resultado da minha ação. Ou seja, a ação é boa quando ela produz boas consequências. Sua pergunta é a de "para que fim devo agir?" Por último, e a mais importante para nossa proposta, é a ética da virtude, cujo principal expoente é Aristóteles. Nesta última, o agente decisivo não é exatamente a consequência ou a causa da ação, mas o caráter do agente. Dessa forma, a pergunta é "que tipo de pessoa devo ser?"
Também é importante desenvolvermos um pouco mais acerca do conceito de liberdade. a liberdade é pré-condição para a moral. Na filosofia, há duas formas proeminentes de se falar de liberdade. A primeira é a liberdade negativa, que entende que a liberdade é fazer aquilo que eu quero. Se ela não pode se efetivar, é porque algo me coíbe de fazer o que desejo. Há a liberdade negativa externa e interna. Na externa, algo que está fora de mim me impede de fazer o que quero, por exemplo, meus pais me proíbem de sair, ou o grande exemplo liberal, de que o Estado impede a liberdade dos indivíduos. Na liberdade negativa interna, eu mesmo me cerceio por medo de fazer o que eu quero, como o medo de viajar de avião, o que me impediria de conhecer um outro país.
Já a liberdade positiva é aquela que entende que para agir livremente, a partir de uma vontade livre, eu preciso ter condições. Não há como ter liberdade, nessa segunda concepção, se me faltam opções, oportunidades, habilidades, falta de autodeterminação, de maioridade ou impulsividade. Voltando para o exemplo da viagem, eu não posso conhecer outro país se não tenho dinheiro para fazer a viagem (externo) ou se eu não tiver acesso à língua daquele lugar para sobreviver lá (interno).
Sabemos que Aristóteles tem 3 obras sobre ética, a ética a Nicômaco, ética a Eudemo e Magna moralia.
Para Aristóteles, o Bem é pelo que tudo anseia. Até as coisas inanimada anseiam o Bem. Ele divide o Bem em duas categorias, os bens extrínsecos e intrínseco. O bem extrínseco são instrumentais, ou seja, serve para algo. Já os Bem intrínseco está na própria práxis, na própria atividade, tendo ela valor em si mesma. Dessa forma, para o estagirita, a práxis é mais nobre porque se faz em virtude de si mesma, já a poiésis (obras ou produtos das atividades) se faz em virtude de algo externo. Para Aristóteles, o ser é um ato. Por isso o ato é o mais fundamental da filosofia.
Dessa forma, a práxis é um Bem superior porque sua finalidade se encerra na própria prática. O bem não está no produto da ação, mas na própria ação. Se, portanto, uma finalidade de nossas ações for tal que a desejamos por si mesma, ao passo que desejamos as outras somente em virtude dessa, e se não elegemos tudo por alguma coisa mais (o que, decerto, prosseguiria ao infinito, de sorte a tornar todo desejo fútil e vão), está claro que se impõe ser esta o bem e o bem mais excelente. Por isso a política é a práxis mais excelente.
O objeto, meta e pressuposto da ética é a prática boa. Lembrando que, para Aristóteles, a ciência política é a arte de governar, a arte de produzir o Bem. Dessa forma, a ética parte da política, está subordinada a ela, já que o objeto dela é o Bem. A ética pensa uma prática boa, ou seja, uma vida feliz. A Ciência política é mais abrangente, portanto, a ética individual é subordinada a ela; porém, o critério da política é a felicidade dos indivíduos no estado; para essa, a convivência na polis é decisiva, mas o indivíduo continua o sujeito da felicidade (não: vontade geral etc.). Ou seja, o critério da política é a felicidade dos indivíduos no Estado, portanto, o político deve estudar a alma (individual) humana. A ética é, então, a teoria da felicidade de como viver uma vida boa.
Esse sentido de ética que encontramos em Aristóteles parece ter se perdido na modernidade. A teoria da moral moderna vai se perguntar sobre a conduta correta e as finalidades certas, ou seja, como agir. Aristóteles vai pensar a ética como uma teoria da felicidade, da vida bem vivida. Portanto, sua pergunta é "como posso ser feliz?". É uma outra premissa. Ele também defende que há uma multiplicidade e uma hierarquia do Bem. A felicidade estaria no topo dessa hierarquia. A felicidade tem critérios normativos. Há uma concepção objetiva, para Aristóteles, da felicidade que contém valores intrínsecos. A busca pela felicidade é a busca pela vida boa, pela forma que eu quero dar para a minha vida. Porém, a felicidade implica deveres, por isso, não se trata simplesmente de uma economia de prazeres. Nesse sentido aristotélico, a felicidade é viver uma vida bem vivida. Quando a vida é boa, isso causa prazer no indivíduo e os outros o veem como alguém honroso.
A felicidade, portanto, mostra-se como alguma coisa completa e autossuficiente, a finalidade de todas as ações. A expressão autossuficiente, entretanto, não a concebemos com referência a alguém só, vivendo uma vida isolada, posto que o ser humano é, por natureza, social. Entendemos por autossuficiente aquilo que por si só torna a vida desejável e destituída de qualquer carência: e julgamos ser isso a felicidade.
A função do ser humano é uma certa forma de viver constituída como o exercício das faculdades e atividades da alma em consonância com a razão e a função de um homem bom é executá-las bem e corretamente, e se uma função é bem executada quando o é de acordo com sua própria excelência, nesse caso se conclui que o bem humano é a atividade das faculdades da alma em conformidade com a virtude. Ademais, por uma vida completa; pois uma andorinha não faz verão, nem um belo dia; e igualmente, um dia ou um efêmero período não torna alguém, tampouco, abençoado e feliz.
A virtude não existe por natureza (mas também não é contra a natureza), não é algo já dado, mas algo adquirido através do hábito. Precisamos colocar em atividade as ações virtuosas. Precisamos treiná-la até que ela se torne nossa segunda natureza. Nesse sentido, aquele que se esforça para agir virtuosamente ainda não é virtuoso. Assim, "somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito". Para ele, atingimos a felicidade se praticamos aquilo que é da excelência do homem. Ele vai fazer todo um caminho para dizer qual seria essa excelência. Ele vai falar de três partes da alma. Existe a parte vegetativa da alma, que é aquela que está presente em todo ser vivo e que é responsável pela nutrição e reprodução. A outra parte é a apetitiva, que está vinculada aos desejos. Todo animal possui a parte apetitiva e vegetativa. Para os animais, o ambiente já é dado. A realização dos seus desejos vai se dar simplesmente pelo sucesso da sua adaptação a esse ambiente ou não. Mas o ser humano possui uma terceira parte que não está em nenhum outro animal, a parte intelectiva, que é responsável pela razão. Esta última é superior as outras duas, é o que faz o homem ser diferente dos animais irracionais.
"A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha, ela consistente numa mediania relativa a nós e é determinada pela razão; assim como um homem prudente costuma determiná-lo".
Dessa forma, a ação humana depende de uma equação das 3 partes da alma. Mas a boa ação é aquela que corresponde a parte mais excelente, a parte intelectiva. Quando o desejo vai contra a parte intelectiva e agimos apenas por nossos apetites, apenas pelo querer, não temos uma ação boa. Para que a atleta do exemplo anterior possa encontrar novos objetivos de vida, ela vai precisar ter em mente qual a relação do seu desejo com outros aspectos da sua vida. É preciso levar em consideração que nossos desejos têm uma história, que eles não têm um único objeto, podendo variar em determinado momento das nossas vidas, e que a forma que agimos hoje pode impossibilitar uma possível satisfação futura. Então é necessário que possamos avaliar se vale a pena ou não satisfazer determinados desejos. Não fazer o que eu quero hoje pode possibilitar que eu consiga uma outra coisa no futuro, que eu julgo ser mais importante. Apesar de não refletirmos muito sobre isso, temos, pelo menos intuitivamente, a consciência de que os nossos desejos podem ser transformados ou até mesmo substituídos. Aquilo que nos parecia necessário em determinado momento de nossas vidas, já não é mais hoje em dia, ou até mesmo nem faça mais sentido.
Encontramos em Aristóteles sempre uma referência ao outro. Por exemplo quando ele fala da ciência política como a ciência mais excelente ou quando encontramos a ética como aquilo que lida com a realidade do convívio. Isso se dá porque o ser humano é um animal político. Ou como quando ele vai dizer que a justiça é a virtude perfeita porque ela é direcionada ao outro. A justiça sempre tem a ver com a relação com o outro. A justiça faz o que é bom para os outros. Nesse sentido, a ética não é uma coisa individual, que determina a direção da nossa vontade, ela também tem a ver com a nossa relação com os outros. Pensando com o Aristóteles, todo indivíduo deve procurar reconhecer sua vida como uma unidade de sentido que tem a ver com o todo.
O conceito central da justiça é o de igualdade. O injusto é aquele que age através de extremos, através de ações deficitárias ou pelo excesso. É por isso que ele vai colocar como critério de ação virtuosa uma espécie de mediania quase aritmética que vai medir nossa vontade e nossa relação com os outros. A justiça seria fazer com que cada um tenha e faça a sua parte.
Talvez essa forma de pensar a virtude através da mediania não seja mais tão adequada ao pensamento moderno e a nossa proposta aqui, mas tem algo de fundamental que é a questão de como podemos alcançar uma ação justa. Diferente dos animais, pensamos na responsabilidade dos nossos atos. Pensamos se nossas ações foram ou não boas, seja para as nossas vidas, seja para os outros. Isso vai depender de uma certa referência que temos acerca do que é ou não bom. Na modernidade, isso não está dado. Essa referência sempre dependerá da nossa formação, ou seja, da nossa família, cultura, escola etc. O que podemos retirar da discussão acerca da mediania em Aristóteles é que para ser um agente racional responsável ele precisará direcionar seu desejo a partir de um raciocínio prático que leva em consideração não apenas a si mesmo, mas também os outros. Só podemos ter uma vida plenamente realizada se os nossos desejos, acompanhados pela razão, nos levar a uma ação boa.
Pro Aristóteles, o ético diz respeito à conduta relacional dos seres humanos e como essa conduta se relaciona com o bem e com a justiça. Dessa forma, não faz sentido falar de uma ética isolada dessa relação. Um indivíduo só pode obter seus próprios bens individuais através dos bens comuns que nós compartilhamos com a nossa família, com nossos amigos, com a nossa sociedade. Nesse sentido, a ética está sempre subordinada à política, à coisa pública. Isso vai totalmente contra a essa ideia de liberdade como o fazer aquilo que se deseja, prescindindo totalmente do outro. Para essa tradição não é possível deliberar livremente sem o outro. É necessário levar em consideração o bem comum. É por isso que não podemos ser livres em uma sociedade não livre. Se a ideia de bem comum for eliminada, só resta a concepção de um indivíduo totalmente abstraído das suas relações sociais.
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