Hildeberto 14/08/2018O livro "História do Cerco de Lisboa" foi escrito antes do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" e do Nobel de 1998. José Saramago já era um autor conhecido e reconhecido, principalmente a partir da publicação do livro "Memorial do Convento".
Como fã do autor, essa fase (anos 1980) me é saudosa. Saramago ainda estava construindo seu nome no mundo literário. Ele já escrevia do seu jeito peculiar, tentando simular a fala dos contadores de estórias do Alentejo. As temáticas que seriam recorrentes já são abordadas: relações humanas, metalinguagem, realidade e linguagem, uma visão sem floreios da natureza humana, a ironia, o sarcasmo, as inúmeras alfinetadas as crenças religiosas...
Como disse, essa fase me é saudosa. O autor ainda é relativamente inseguro para ousar demais, menos ambicioso no seu projeto narrativo. O resultado é um livro simples e belo pela sua falta de ambição.
Um revisor põe um "Não" em um livro sobre a história do cerco de Lisboa, o que leva uma celeuma na editora. Ele não é demitido, mas seu trabalho deverá ser supervisionado por uma mulher contratada em decorrência do fato. Desse relacionamento, nascerá não só um romance como o "livro dentro do livro".
Maria Sara, a supervisora recém contratada dos revisores, sugere a Raimundo, a personagem principal, que ele escreva um livro sobre a história alternativa do cerco de Lisboa. Raimundo criará um enredo para essa "história" alternativa, e Saramago nos contará a história do relacionamento que se vai construindo entre Maria Sara e Raimundo.
Os livros de Saramago são atos linguísticos e filosóficos. Linguísticos porque sua forma de escrita e seu vocabulário são desafiadores: há um prazer sonoro na leitura e uma dificuldade em entender certos significados (algumas palavras e expressões não são usadas por nós, brasileiros; outras caíram em desuso, visto que o livro é de 1989; e ainda outras não são usadas na linguagem cotidiana). Filosófico porque o autor não hesita em tecer considerações por toda a trama. Estes dois elementos criam uma obra substantiva, mas simples em seus contornos gerais.
Vários temas são abordados, mas destaco a questão sobre linguagem e realidade. A história do cerco de Lisboa foi mudada apenas com um "Não". A partir desse ponto, o autor argumenta que a linguagem e a realidade são elementos que convivem, mas que nem sempre se confundem. A linguagem tenta reproduzir a realidade, mas nessa tentativa de reprodução, quanta coisa se perde e quanto se acrescenta? Por algo não ser dito, só por isso ele não é real? Em tempos de fake news, este tópico nunca esteve mais atual.