Tamirez | @resenhandosonhos 27/09/2016Morada das LembrançasSempre que encontrava alguém falando de Morada das Lembranças via a emoção que transbordava através das palavras. E esse foi um dos principais motivos pelos quais resolvi fazer essa leitura. A Revolução Russa é um território estranho pra mim e acredito que esse seja um dos únicos livros que li que tenha esse acontecimento histórico como background.
O fato de a história se direcionar para o Brasil acaba por chamar mais a atenção. Por trás da guerra, das dificuldades das famílias e das jovens que imigravam para o país em busca de um futuro melhor, se criou uma gigantesca rede de aliciamento e prostituição dessas mulheres chamadas “polacas”. Nem as crianças se safavam e desde que pôs os pés no pais tanto a mãe quanto a filha foram abordadas pela avó para que aderissem a situação e passassem a contribuir com dinheiro para a casa.
E, por mais complicado que seja admitir, mesmo o livro se passando a quase 100 anos atrás, ainda é possível encontrar essas redes de prostituição e aliciamento de menores, sejam eles naturais daqui levados para fora do Brasil ou imigrantes que são obrigados a oferecer o corpo em troca de alguns trocados e, por vezes, sobrevivência. Isso é algo que acontece longe dos nossos olhos e já foi alvo de filmes e novelas, mas que também é um assunto deixado no esquecimento.
“Cada morte leva consigo um pequeno pedaço nosso e assim seguimos, às vezes esburacados, às vezes mais fortes. Será que, após cada morte, nasce algo que preencha momentaneamente nossos corações?”
Não há nada de excepcional na construção da narrativa, conhecemos essa história pelos olhos da menina, em primeira pessoa, e sentimos o que ela sente, a confusão, o sofrimento, a dúvida, a dor e a perseverança. O que Morada das Lembranças nos passa e que vários livros pecam em transparecer é a emoção e a sensibilidade dessa história. Por mais que a narrativa seja simples, o livro transborda sentimento.
O que vem nas entrelinhas da jornada traçada dessa família, vai além do que qualquer grande técnica de escrita. A luta dessa família, a coragem dessa menina e a forma simplista e orgânica como ela vê as coisas vale cada página e emociona o leitor. E, um fator que é super curioso, é que o nome da menina que nos conta sua trajetória não é revelado. Deixando-a anônima em sua própria história.
A um certo ponto é possível apenas pensar que não há como as coisas darem certo, que veremos essa personagem querida sofrer e perder a alegria. Porém ela tira forças de onde nem o leitor é capaz de ver. Não é uma narrativa feliz, não é uma história de sorrisos e alívio. Moradas das Lembranças é um livro para ser refletido de forma intrínseca, é para encontrar a lição no sofrimento, na superação.
“Sou o que sou, nunca me perguntaram se consigo carregar a bagagem que vem com a minha raça, minha religião. Temos que carregar aquilo com o que nascemos, seja o que for.”
Outro aspecto interessante é que quando essa família chega ao Brasil uma das coisas que são obrigado a fazer é abandonar suas reais identidades. Eles ganham nomes novos e precisam se adaptar a uma nova cultura, esquecendo tudo aquilo que deixaram pra trás. Acho que mesmo que o que lhes aguardava aqui sendo algo positivo isso não seria uma situação fácil, se despir de quem você é. Mas tendo em vista todo o desamor que encontraram e o desafio de buscar formas de sobreviver sem se submeter a prostituição deve ter agravado tudo ainda mais.
Quando parei pra pensar sobre isso, refleti que talvez a menina não ter o nome revelado durante o livro para o leitor tenha a ver com isso. No fim do dia não importa quem ela era antes, somente quem ela deveria se tornar aqui para conseguir seguir em frente e garantir o seu bem estar e o do irmão. De toda forma, quase tudo que lhe era amado no passado, já não faz mais parte de sua vida quando elas resolvem partir para fugir da Revolução Russa.
Além da história ser de uma delicadeza imensa, a edição também não fica pra trás. As páginas possuem uma diagramação diferenciada, com uma série de “estampas” intercaladas, que ajudam a dar um tom mais leve à trama. Durante a narrativa a autora menciona o fato de que as lembranças são como retalhos que vamos costurando ao longo da vida e, acredito eu, a disposição das estampas esteja relacionada com isso, bem como é possível notar que há uma mudança nos jogos de cor, entre quente e frio, conforme o enforque da história.
Daniela Bauer é uma autora nacional e esse é um livro muito bom, que merece ser comentado e lido. Acho que se encantar por uma obra pela forma como ela é escrita e ver isso dar peso a uma história simples tem um significado todo especial ao leitor. Eu tenho alguns livros assim em minha estante e sei o quanto é difícil tentar explicar para as pessoas como a história me conquistou pela sensibilidade, mesmo que não seja uma obra que leve 5 estrelas.
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