regifreitas 11/10/2010
O anatomista
Já fazia algum tempo que esse livro aguardava a minha leitura, na estante aqui de casa. Mas vinha adiando sempre esse momento. Pouca coisa sabia sobre a obra, e absolutamente nada sobre o autor. Mas o enredo me chamou a atenção e resolvi comprá-lo mesmo assim. Gosto do prazer da descoberta de coisas novas e de novos autores. Muitas das obras que hoje admiro me chegaram assim, quase do nada. Não foram indicações nem de amigos nem de publicações especializadas. Simplesmente surgiram à minha frente como se destinadas a que eu as lesse.
Pois bem, o livro foi lido quase de um fôlego só, somente fazendo pausas para as inevitáveis chamadas que a vida real impõe. E como Mateo Colombo, o protagonista d’O anatomista, senti o prazer da descoberta de uma verdadeira preciosidade. João Paulo de Oliveira é quem melhor sintetiza o enredo: “Misturando a realidade histórica com uma inventividade ardente, o argentino Federico Andahazi floreia a história do principal anatomista do Renascimento para criar um livro bastante incomum. Sobre um tripé, uma trindade: o anatomista italiano Mateo Colombo, a viúva franciscana Inês Torremolinos e a maior prostituta de Veneza, Mona Sofia, o escritor remonta a história do descobrimento da ‘América’ de Mateo, o ‘kleitoris’”.
A descoberta de Mateo Colombo, embora infinitamente menor do que a América descoberta por seu homônimo famoso, era bem mais perigosa, e para o tribunal da Inquisição nunca deveria vir a luz. Descrevendo sua descoberta no tratado “De res anatômica”, o anatomista a nomeia de “amor veneris” – “o órgão que governa o amor nas mulheres”. Contudo, a publicação dessa obra foi proibida “segundo o disposto nos ‘Indices librorum prohibitorum’”, e seu autor nunca deveria divulgar o conhecimento de tal descoberta. Para os Doutores daquele Tribunal da Inquisição: “Por certo, a publicidade do descobrimento conduziria, forçosamente, a todo gênero de danos. O que sucederia se o achado de Mateo Colombo caísse nas mãos dos inimigos da Igreja? A que calamidades não seria confrontada a Cristandade se, do feminino objeto do pecado, se apoderassem as hostes dos demônios ou, pior ainda, se as próprias filhas de Eva descobrissem que possuem, no meio das pernas, as chaves do céu e do inferno?” (p.152).
Durante o julgamento de Mateo Colombo somos confrontados com o impressionante machismo que a Igreja de então (?) defendia. As mulheres mais liberais ou que demonstrassem um centímetro a menos de pudor eram julgadas como bruxas e feiticeiras, e seu destino era arder nas fogueiras da Inquisição. Diante do próprio Tribunal, e para ganhar as graças dos seus juízes, o anatomista defende a tese de que a mulher é destituída de alma, sendo somente matéria, ideias expressas pelo próprio Aristóteles na “Metafísica”. Do depoimento de defesa de Mateo Colombo: “Como ensinou Mestre Aristóteles, o esperma do homem é a essência, é a potencialidade essencial que transmite a virtualidade formal do futuro ser. O homem leva no sêmen a ânima, a forma, a identidade, que faz da coisa matéria viva. O homem, enfim, é que dá alma à coisa” (p.137). Logo, “o sêmen do homem é o que dá ao ser em formação a identidade, a essência e a idéia, enquanto a mulher fornece unicamente a matéria do futuro ser, ou seja, o corpo” (p.137).
O livro, então, é um reflexo das teorias defendidas na época, e como tal deve ser lido. A figura da mulher sempre acabou despertando o temor e reverência de cientistas, poetas e religiosos. Aliando erudição e sensualismo, no livro há a perfeita interação entre a história, a ciência e a ficção, despertando surpresa e prazer na sua leitura. Recomendadíssimo!