Helder 26/08/2020Até os melhores autores cometem errosEu posso dizer que se sou leitor hoje, Agatha Christie é uma das “culpadas”.
Ainda lembro a sensação de ler O Caso dos Dez Negrinhos com uns 13 anos de idade e me perguntar: Como alguém pode inventar uma estória como essa??
E este sentimento seguiu durante a minha adolescência, onde devorei diversos títulos da autora, nunca me cansando nem deixando de me surpreender, principalmente nos livros que traziam o querido Hercule Poirot.
Mas aqui a minha experiencia foi completamente diferente e pela primeira vez na vida posso dizer com tristeza que não gostei de um livro da nossa Dama do Crime.
Será que envelheci para estas histórias ou será que desta vez a autora errou?
Será que os problemas que encontrei aqui sempre existiram e eu nunca percebi, ou foi só neste texto mesmo?
Pesquisando na internet, vi escrito em alguns lugares que este era um dos livros preferidos da autora. Como assim?
Infelizmente existe pouca coisa a que ela pudesse se orgulhar, e se ela colocasse a mão na consciência, aqui existe muita coisa da qual Agatha deveria se envergonhar.
Para mim, em Punição para Inocência, a autora pesou a mão em seus personagens, criando um grupo de pessoas insuportáveis, preconceituosas e extremamente mal agradecidas, o que torna a leitura muito difícil.
Eu queria que todos fossem culpados como em um outro livro famoso da autora, pois ali ninguém merecia minha atenção ou piedade.
O livro tem uma dinâmica diferente de outras estórias o que até é interessante.
Aqui não temos Poirot, nem Miss Marple, e diferente da maioria das obras da autora, o crime não está fresquinho.
Um dos narradores da estória é um homem chamado Calgary, que chega à mansão da família Argyle com uma informação que ele acredita que trará alivio para a família.
Há dois anos a matriarca da família foi assassinada, e o acusado foi um dos seus filhos, Jack, que tinha um histórico de delinquência e violência, e cujo álibi nunca foi comprovado. Ele dizia que no horário do assassinato, tinha pegado carona com um estranho, mas este nunca foi encontrado.
Jack foi condenado a prisão perpetua, mas acabou morrendo na prisão após 6 meses.
Mas agora Calgary está ali. E ele era o álibi de Jack. O estranho da carona. Ou seja, Jack era inocente.
Porém a notícia que deveria trazer alívio para a família, na verdade só traz mais problemas. Se Jack era inocente, isso significa que existe um culpado entre eles ainda.
E por incrível que pareça, de repente Calgary percebe que ali ninguém queria que Jack fosse inocente.
Enquanto não punimos o verdadeiro culpado, os inocentes seguem rotulados como suspeitos e não tem paz. Isso não pode ocorrer.
Agatha já escreveu outros livros sobre crimes antigos desenterrados, acontece que aqui ela perdeu a mão. Ou melhor, ela pesou a mão sobre seus personagens. É incrível como todos os personagens desta estória são ruins. Ruins como caráter e ruins como personagens literários.
São simplesmente inverossímeis.
Logo descobrimos que Rachel Argyle, a matriarca assassinada, na realidade não era mãe de ninguém.
Ela era rica, e como nunca pode ter filhos, acabou adotando várias crianças, que agora crescidas, mostram-se completamente mal agradecidas pelo que a Sra Argyle lhes proporcionou.
A autora tenta o tempo todo nos convencer que Rachel Argyle era uma mulher autoritária que tolhia a liberdade de seus filhos, mas só consegui ver um bando de gente mal agradecida e mesquinha.
Eu nunca tive nenhum problema com os pensamentos de Agatha Christie. Sei que ela viveu em outra época, até outro século e compreendo que tenha ideias diferentes das existentes hoje no século XXI.
Também detesto a onda do Politicamente Correto que apareceu nos últimos tempos, condenando Monteiro Lobato, Lovecraft, ou até retirando o maravilhoso filme E O Vento Levou de serviços de streaming. Acho tudo isso tempestade em copo d’agua e uma grande falta de assunto, mas aqui não tem como passar pano nas coisas que este texto traz.
Quero crer que minha boa velhinha Dama do Crime exagerou tudo por aqui, pois queria deixar a estória mais pesada, e que aqueles não são seus reais pensamentos, mas confesso que durante a leitura foi difícil desassociar as duas coisas. Eu só via uma velha inglesa aristocrática me contando uma estória extremamente preconceituosa e errada.
Para começar o livro é um desserviço ao processo de adoção de crianças.
Quem ler este livro e levá-lo a sério, nunca pensará em adotar uma criança.
De acordo com a autora, o mal adquirido numa infância abusiva, nunca mais poderá ser corrigido, nem que apareça uma figura que encha estas crianças de carinho, então a conclusão que chegamos é que se adotarmos uma criança de um lar instável, com certeza no futuro teremos um delinquente.
Eu tenho amigos com filhos adotados, cujas crianças são extremamente parecidas com seus pais, pois o que garante isso é a educação, e não a genética. Mas Agatha não concorda com isso. No discurso retrogrado e quase nazista deste livro as características ruins são transferidas pelo sangue, e não podem ser alteradas por nada.
Rachel Argyle era exagerada? Talvez. Mas minha mãe que não é adotiva também é, e nem por isso eu falo sobre ela de maneira mesquinha.
No fim, tudo isso prejudica muito a leitura, pois eu realmente torci para que todos fossem culpados.
Além deste pensamento deturpado sobre adoção, ainda temos trechos racistas (Tina, a mestiça, parecia uma aberração) e machistas (O sonho de toda mulher é casar-se).
Nunca achei Agatha Christie uma senhora progressista e isso nunca me incomodou em suas estórias, mas aqui o tom retrogrado do texto prejudicou demais minha experiencia com a obra.
Sinal dos tempos? Sei lá.
Faz tempo que não leio Agatha Christie e fiquei com o pensamento: Será que o texto de Agatha Christie envelheceu para mim?
Eu acho que não e vou seguir lendo outros títulos da autora, mas confesso que fiquei com o pé atrás com aquela doce velhinha de quem eu era fã incondicional.
Mas falei, falei e não falei sobre o crime.
No fim, para mim a conclusão é legalzinha, mas lá pela metade eu já tinha imaginado o criminoso e sua real motivação, então acabou sendo somente um livro mediano.
Se nunca leu Agatha Christie, não comece por esse não. Tem dezenas de títulos muito mais interessantes.
Não recomendo!