spoiler visualizarPaisagens Literárias 24/12/2019
O Papai Noel: uma construção simbólica pagã do homem moderno
O ensaio inicia com uma observação sobre uma polêmica que ocorreu e 1951 na França durante as festas de Natal, na qual autoridades eclesiásticas manifestam sua desaprovação à importância cada vez maior que as famílias e comerciantes vinham dando à figura do Papai Noel. Essas denúncias faziam referência ao desvio do espírito cristão dessa data em favor de um mito sem valor religioso; o Papei Noel havia sido condenado de usurpador e herege, bem como de paganizar a festa de Natal. O ponto culminante dessa situação foi uma manifestação na véspera de Natal daquele ano, em que um Papai Noel foi enforcado e queimado em uma catedral diante crianças órfãs na cidade de Dijon.
Este acontecimento foi avaliado de diversas maneiras e dividiu a cidade em dois campos. Essas reações levaram a uma grande tendência da divisão da opinião pública e da igreja, que gerou uma oportunidade para os anticlericalistas tradicionais, estes passaram a defender o Papai Noel. “Papai Noel símbolo da irreligião, que paradoxo! ”. Por que o personagem do Papai Noel ganha espaço, e por que a Igreja observa esse movimento com preocupação?
O autor levanta a questão de que na época o debate sobre a figura do Papai Noel passou a fugir da questão em vez de responde-la, porque não se tratava mais de justificar as razões pelas quais as crianças gostavam desta figura, mas sim as razões pelas quais os adultos a inventaram. Tal episódio, de fato, encobria questões mais profundas, da evolução e das crenças e dos costumes [a princípio na França, depois possivelmente em outros países].
Desde que a atividade econômica havia se normalizado no pós-guerra no país, a comemoração do Natal assumiu dimensões antes desconhecidas. Segundo o autor, esse desenvolvimento foi resultado direto da influência e do prestígio dos Estados Unidos, assim como do Plano Marshall. Costumes que a pouco tempo atrás que pareciam estranhos aos franceses que visitavam os Estados Unidos se implantaram na França com grande facilidade. Entretanto, aponta que seria simplista explicar o desenvolvimento de tal comemoração no país somente por essa razão.
Lévi-Strauss procura então identificar o fenômeno através do processo de “difusão por estímulo”, na qual o costume importado não é assimilado, mas funciona como um catalizador em determinada sociedade. O Natal já era comemorado mesmo antes da guerra em toda a Europa, é um ritual cuja importância se modificou bastante ao longo da história [aqui no texto o autor faz várias descrições de como isso ocorreu]; a forma estadunidense desta festa seria apenas a sua forma mais moderna.
No entanto, “por que é em torno da figura de Papai Noel que se concentra a animosidade de algumas pessoas?”.
A figura do Papai Noel é interpretada como um rei que encarna a forma benevolente da autoridade dos antigos. No entanto, não é um ser mítico, pois não há um mito de dê conta de sua origem e de sus funções; tampouco é um personagem lendário. Na verdade, é um ser sobrenatural e imutável, que possui uma forma específica e uma função exclusiva ligada a determinado período do ano. De certa forma, pode ser considerado uma divindade, as crianças lhe prestam culto em certas épocas através de cartas e pedidos, porém os adultos não creem nele, apesar de incentivar as crianças a fazê-lo. Assim, ao constituir um status relativo às crianças na sociedade, Lévi-Strauss identifica na sua figura ritos de passassem e iniciação.
“Os ritos e mitos de iniciação possuem uma função prática nas sociedades humanas: eles ajudam os mais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos”.
No entanto, existe um deslocamento do mítico e isso requere alguma explicação. No Natal adultos invocam a figura do Papai Noel para lembrar as crianças que a generosidade é condicionada pelo bom comportamento e a distribuição de presentes é útil para disciplinar as reivindicações dos pequenos; reduzindo a um curto período, em que elas tem o direto de exigir presentes. Essa explicação simples não explica a como um todo a situação. De onde vem a ideia de que as crianças têm tais direitos? Porque os adultos são obrigados a elaborar mitos e rituais para conseguir contê-los e limitá-los? A conclusão que o autor chega é de que o Papai Noel não é apenas uma mitificação agradavelmente imposta pelos adultos as crianças, é uma negociação entre as duas gerações.
O autor sugere que o Papai Noel pertence a uma família de divindades relacionadas aos ritos de passagem e iniciação que, tradicionalmente, regem trocas simbólicas, oferendas, presentes entre adultos e crianças, vivos e mortos. A construção desta hipótese exigiu uma análise comparativa entre mitos e ritos de tempos e lugares distintos. Os exemplos mais distantes, por suas semelhanças “estruturais” validam o alcance universal do fenômeno, enquanto que os exemplos mais próximos expõem “sobrevivências” e eventuais vínculos destas mesmas “estruturas” com o fenômeno em pauta, no caso, especialmente com os ritos de solstício das Saturnais romanas, e com as tradições medievais.
Nesse sentido, cabe ao Papai Noel articular as passagens para que sejam ciclicamente renovadas as trocas simbólicas entre mortos e vivos: “[o]s presentes de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer”.
O Papai Noel é uma reformulação de divindades pagãs que convergiram para a construção simbólica deste personagem natalino que conhecemos. Entretanto, seu papel na celebração natalina, como divindade articuladora dos ritos e ofertórios de renovação e o culto à vida, não está necessariamente em desacordo com os valores cristãos. São expressões da mesma realidade. Dessa maneira, o sacrifício do Papai Noel em Dijon restaurou sua plenitude, apesar da igreja estar certa que a crença no Papai Noel é um sólido campo do paganismo do homem moderno. “Resta saber se o homem moderno não pode também defender os seus direitos de ser pagão”.
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