Kelly Oliveira Barbosa 28/07/2017[Um ressentido brilhante escritor]Franz Kafka (1883-1924) é um dos meus autores preferidos, um dos poucos que pretendo conhecer a obra completa. É sempre subjetivo explicar o que realmente chama-nos a atenção para um texto ou escrita. No caso dele, posso dizer que é a capacidade de nos envolver emocionalmente sem demonstrar a intenção de fazê-lo. Não é o sofrimento do personagem em si, não são as frases de reflexão, não é a dúvida, a indiferença, o tempo, o medo, a morte... É o conjunto de tudo. É o cenário abstrato que reflete a triste realidade humana, que toca-nos. Daí creio eu, a fama que suas narrativas têm de serem perturbadoras, inquietantes, claustrofóbicas. Uma vez percebida a angústia escondida nas almas humanas, ainda que por um breve tempo, pelas páginas de uma ficção, as reações não poderiam ser outras.
Diante de tal maestria, a curiosidade pela figura do autor é inevitável. Após ler dois de seus aclamados romances e alguns contos, li também a sua biografia escrita pelo historiador e crítico de arte Gérard-Georges Lemaire, considerado um especialista nas obras de Kafka.
Esse biógrafo organizou todos os fragmentos – diários, cartas, livros, relatos (principalmente de Max Brod) etc; – ressaltando sempre, a origem judaica de Kafka. É interessante como ele deixa à impressão que ele, ainda que dito ateu na juventude, parece no final da vida ter sido mesmo um sionista.
Mas não é só a questão individual – Kafka, o judeu – Lemaire apresenta sua vida infeliz, como um símbolo da inquietante “perda da consciência judaica”, isso é, a condição dos judeus no começo do século XX, quando os mesmos se queriam "alemães", desejando sem reservas a assimilação social e cultural, renunciando cada vez mais a seus valores ancestrais, à sua história e mesmo a seus fundamentos religiosos. E sua prematura morte, como um verdadeiro presságio dos horrores que esse povo sofreria com a segunda guerra.
Ele coloca então, a “origem” e “dor” judia como a moldura da vida de um homem comum, dotado de uma habilidade incomum, de transferir para o papel as suas angústias. Esse é até um ponto importante, a leitura da biografia de Kafka desmistifica a sua pessoa. É normal que os admiradores, não só de escritores, mas de qualquer artista; deslumbrados com a sua arte, comecem a formar uma áurea misteriosa em volta dela. Kafka foi um homem comum. Era dotado de um talento digno de admiração sem dúvida, mas não há nada de especial além disso. Para dizer a verdade, há até o que decepciona um pouco.
Não vou entrar em detalhes sobre a sua vida aqui, mas vale a pena pontuar algumas coisas. Temos um homem com uma vida familiar difícil, se tratando de relacionamento (pois financeiramente eram até bem favorecidos para o contexto da época) principalmente em relação ao pai; o que se dá na infância, prolongando-se na fase adulta. Os demais relacionamentos, seja amizades ou amorosos, também muito complicados. Um homem que queria escrever, por isso julga os demais trabalhos enfadonhos, insuportáveis. Entretanto, quando pode escrever, faz dessa atividade (incluindo tudo que se relaciona a isso, como as publicações por exemplo) uma verdadeira tortura a si mesmo.
Pelas citações do seu diário e cartas, dá para ter uma ideia de uma pessoa pessimista em relação a tudo. Parece que para Kafka não existia nada de bom a sua volta e quando existia, isso, não fazia parte da realidade; mas era fruto de suas recorrentes ilusões. Inseguro, inconstante, imaturo... ressentido. Ressentido é a palavra que o define para mim após a leitura dessa biografia.
Um ressentido, mas brilhante escritor! Isso é inegável. Os comentários de Lemaire, ainda que rasos, sobre as obras “A metamorfose”, “O processo”, “O veredito”, “O artista da fome” e “A carta ao pai”; só fizeram crescer minha admiração pelo que já li e curiosidade para ler as demais.
Falando da biografia em si e já finalizando, não gostei muito. A história de Kafka é interessante, bem como a reflexão já citada quanto a origem judia do mesmo; porém a escrita de Lemaire é bem cansativa e desconexa as vezes. Não descarto que seja um problema de tradução e não do biógrafo. Entretanto recomendo a leitura, apesar dos pesares, é bom poder contar com esse material em português.
(recomendo a leitura desse texto no blog)
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