sr. felix 20/02/2023
O projeto onírico do inferno.
Nesta história, com roteiro de Alan Moore e arte de Eddie Campbell, reside apenas uma das versões que giram em torno da figura mítica de Jack, O Estripador ? o precursor da modalidade que um dia chamaríamos serial killer.
Baseando-se em diversas fontes e uma pilha monstruosa de material informativo, Moore dá forma ao personagem folclórico que assombrou a cidade de Londres no outono de 1888. Aqui, em Do Inferno, William Whitey Gull, médico da Família real britânica, surge como a personificação do assassino.
Os crimes perpetrados por Gull (ou Jack), em seu plano mirabolante de sacrifícios ritualísticos em prol de sua deificação pessoal, bem como em favor de promover um sigilo do Império Britânico, serviriam apenas como vislumbre do que surgiria nos séculos subsequentes ? guerras, sangue e avidez pelo poder.
O bairro de Whitechapel, onde ocorreu os cinco assassinatos, era reflexo da grande massa submersa na pobreza de uma Inglaterra em plena ebulição industrial. O êxodo da população rural rumo às grandes cidades causava superlotação nos distritos marginais, formando um caldo amargo de penúria e miséria moral.
Mulheres eram obrigadas a servir de vitrine, vendendo o próprio corpo para poder sobreviver ao dia-a-dia; crianças tinham de iniciar precocemente a vida laboral para ajudar a pôr comida à mesa; e homens sujeitavam-se a qualquer tipo de serviço para não morrer de fome.
É nesta tela obscura que o quadrinho ganha forma: uma sociedade fragilizada, em tenra reconstrução, refém de um assassino brutal e de um jogo que iniciou-se perdido. Seja lá quem tenha sido verdadeiramente o homem que recebeu a alcunha de Jack, O Estripador, fato é que seu propósito obteve logro. Infelizmente, a única que triunfou, como em todos os fins, foi a morte ? e, obviamente, a injustiça, pois o algoz nunca recebeu o que merecia.
A obra é uma análise sobre o mal e sua raiz macabra advinda do coração humano, além de ser uma referência do substrato historiográfico decorrente de um país arcano e vetusto. No entanto, também há algo metafísico e de extremo simbolismo presente nas entrelinhas. O espírito de Jack ? sua sina incurável de eternizar-se e sua aptidão em dissociar o ser humano do real ? é a essência da malignidade sendo entretecida no útero de um século porvir. É o rastro serpentino que nos conduziu ao limiar do abismo.
Com extrema maestria, Moore destaca uma fala memorável de Jack enquanto este delira no momento que comete o último homicídio. Transportado para décadas no futuro em um arroubo alucinógeno, reclama àqueles que estão diante de si:
"Como eu lhes pareceria? Algum vilão arcaico ou um horror da literatura barata. No entanto, vocês aterrorizam a mim! Vocês não têm alma. Ao seu lado, estou sozinho."
Como cidadãos do mundo posterior, frutos de duas grandes guerras e incontáveis atrocidades, podemos, envergonhados, baixar a cabeça e ceder à afirmativa. A barbárie em Whitechapel se estendeu e eternizou o projeto onírico daquele que, segundo sua carta enviada à polícia, viera Do Inferno.