Thales 27/03/2021
Uma Ferrari a 5km/h
Jorge Amado é conhecido por ter alguns defeitos recorrentes: é repetitivo, verborrágico muitas vezes, lança um exército de personagens inúteis no meio das tramas, se aprofunda em temas e situações irrelevantes, recicla tipos e estereótipos a ponto da gente encontrar vários "sósias" em seus livros e por aí vai. É óbvio que são particularidades que não se verificam ao mesmo tempo e não atrapalham, como regra geral, a leitura de suas obras; fosse assim ele não seria um literato reconhecido e admirado internacionalmente.
Digo "regra geral" porque "Dona Flor e seus dois maridos" é justamente a exceção que confirma a regra.
Tudo, ABSOLUTAMENTE TUDO pelo que Jorge Amado é "atacado" tá presente aqui. O livro é arrastado a ponto de parecer que eu tava carregando um piano durante a leitura. O discurso direto fez muita falta - o autor cismava em narrar os diálogos em vez de simplesmente lançá-los - e a narrativa se perde em vários momentos, seja com a enxurrada de histórias paralelas de personagens aleatórios, seja nos causos do "elenco" principal - só do Vadinho, na verdade. Na terceira história de jogo do vagabundo já parecia que eu tava lendo a mesma coisa em looping; todas elas são engraçadas isoladamente, mas o efeito se perde com a repetição. Elas ocupam quase 200 páginas do livro, enquanto os trâmites pro segundo casamento de Dona Flor, e o próprio casamento, duram páginas de contar nos dedos.
Eu achava até que tudo fosse valer a pena no fim, quando eu me deleitaria com a realização do intuito da obra. Mas isso não aconteceu. Provavelmente porque eu já tava saturado da coisa toda, e não consegui aproveitar as duas últimas partes, que realmente são mais fluidas e envolventes.
E o pior de tudo, o que me deixa mais pistola, é que a história é muito boa. Mesmo. A gente conhece, ela tá no imaginário popular, virou mais de um filme, minissérie e uma centena de montagens de teatro. As reflexões que Roberto DaMatta suscita no posfácio são prova disso. Mas é jogada fora numa obra recheada de vícios, as boas passagens soterradas num mar de repetição e descompasso. E sinceramente só não dou uma nota menor em respeito ao legado do livro e todas as produções geradas a partir dele, além da edição maravilhosa da Companhia - de novo, sem comentários, é uma aula de editoração.
Tivesse "Dona flor" 1/3 do tamanho talvez se tornasse meu livro de cabeceira. Infelizmente Jorge Amado quis fazer feijoada com meia dúzia de grão de feijão. Deu nisso.