Patrick41 01/07/2024
Completamente diferente do filme de 2010.
Para aqueles que conheciam “As Viagens de Gulliver” apenas pelo filme de 2010 com o Jack Black como o Gulliver- tipo eu. Saiba que está perdendo uma grande obra e o filme não consegue nem chegar em 10% da complexidade que é o livro.
Em as “Viagens de Gulliver”, acompanhamos o personagem de nome Gulliver que no decorrer da obra realiza quatro viagens, logo, o livro é dividido em quatro partes. Na primeira parte, ele é o típico viajante do século XVIII, audacioso, prático e sem romantismo, sua atitude simples incalculada habilmente no leitor pelos detalhes biográficos do início. Na segunda parte, mantém em geral o mesmo caráter, mas nos momentos em que a história exige tende se converter em um imbecil capaz de se orgulhar de sua “tão amada nobre nação”
Na terceira parte, ele é mais ou menos como era na primeira, embora, por manter relações em especial com cortesãos e homens de cultura, tenhamos a impressão de que subiu na escala social. Na quarta parte, concebe um horror à raça humana que não é evidente, ou é evidente apenas a intervalos, e se transforma numa espécie de anacoreta irreligiosa cujo único desejo é viver num lugar solitário onde possa se dedicar à meditação.
A primeira parte de “Viagens de Gulliver”, é aparentemente uma sátira à grandeza humana, pode ser vista como um simples ataque à Inglaterra, ao partido liberal-conservador e à guerra com a França.
Swift tem muito em comum com Tolstoi, ambom não creem na possibilidade de felicidade. Em ambos temos o mesmo ponto de vista anarquista por cima de uma mentalidade autoritária; em ambos, uma semelhante hostilidade em relação à ciência, a mesma impaciência com os adversários de qualquer assunto que não lhes interessa; em ambos os casos uma espécie de horror ao processo real da vida, embora no caso de Tolstoi tenha surgido mais tarde e de maneira diferente.
Tolstoi era um libertino reformado que acabou pregando um celibato total, ao mesmo tempo que continuou a praticar o oposto até a velhice extrema. A repugnância, o rancor e o pessimismo de Swift fariam sentido no contexto de um “outro mundo” para o qual este é o prelúdio. Uma vez que, ao que parece, não acredita seriamente nisso, é necessário construir um paraíso que se supõe existir na superfície da Terra, mas algo bem diferente de tudo que conhecemos, com a eliminação de tudo o que ele desaprova: mentiras, insensatez, mudanças, entusiasmo, prazer, amor e imundície.
O objetivo da obra, como sempre, é humilhar o homem ao lembrá-lo de que é fraco e ridículo e, acima de tudo, de que cheira mal; e o motivo supremo, provavelmente, é uma espécie de inveja, a inveja do espírito da vida, do homem que sabe que não pode ser feliz por causa dos outros que podem ser um pouquinho mais felizes do que ele.
Swift é um escritor enfermo. Vive permanentemente numa depressão que em muitas pessoas é apenas passageira, como se quem sofresse de icterícia ou dos efeitos secundários de uma gripe ainda encontra energia para escrever livros. Mas todos nós conhecemos essa disposição de ânimo, e alguma coisa dentro de nós reage à expressão dela.
Swift falsifica o retrato que faz do mundo inteiro ao se recusar a ver algo na vida humana que não seja imundice, loucura e maldade, mas a parte que abstrai de tudo não existe, e é o que todos sabemos e ao mesmo tempo não nos atrevemos a mencionar.
Em nosso entender, o horror e a dor são necessários para a continuidade da vida neste planeta, o que permite que pessimistas como Swift digam: “Se o horror e a dor têm sempre de fazer parte de nós, como pode a vida ser significativamente melhorada?”
Swift não possuía juízo comum, mas possuía, sim, uma espantosa intensidade de visão, capaz de pinçar uma única verdade oculta e depois amplificá-la e distorcê-la.