Ramon.Amorim 15/11/2022
"Nunca me ocorreu a ideia de que eu pudesse levar uma existência diferente, nem que fosse possível viver diferentemente"
A vida é permeada por um conjunto limitado de repertórios de ação ao nosso alcance. Durante muitos anos, desde que nascemos, alguns repertórios vão sendo articulados no nosso cotidiano e no nosso imaginário, naturalizando uma maneira de existir no mundo que, naquilo que há de mais relevante, reproduz uma lógica comunitária do ser em contraponto à lógica individual. Ideias de família, casamento, sexo, filhos, amizade, de como experimentar cada coisa da maneira correta socialmente, estão aí abundantemente na letras das músicas, no cinema comercial, no instagram, na igreja, no catálogo da Netflix, nas novelas, formando nossa identidade desde a mais tenra idade.
De vez em quando, algo escapa a essa lógica arbitrária e nos comunica outras possibilidades existenciais, amadurecidas por outras experiências do mundo real, que, no mínimo, colocam à prova aquilo que fomos aprendendo como correto e verdadeiro. A literatura é parte desse escape, há muito a aprender no contato literário com Hemingway, Jack Kerouac, Henry Miller, entre muitos outros autores e autoras; a vida se torna menos irrisória na intimidade literária com tais autores, expandindo a imaginação e o desejo vital.
Publicado em 1902, O Imoralista, de André Gide, conta a história de Michel, órfão de mãe na adolescência e agora do pai, aos 24 anos. Pouco antes da morte do pai, Michel se casa com Marceline, 20 anos, para satisfação do seu pai, mas não da sua. Em viagem de lua de mel, Michel adoece gravemente na Tunísia e, à medida em que vai melhorando, passa a repensar a vida e sentir a própria existência de uma maneira até então não experimentada por ele. Sentir o declínio final como algo concreto e palpável desperta em Michel a sensação de vida que rompe com o mecanismo social exterior, demole a fachada. Hora da guinada.
A premissa é de superação, mas não é só disso que se trata. Ao assumir pra si um caminho próprio, ignorando a dócil e compassiva esposa, Michel faz dessa experiência uma dura caminhada para Marceline, totalmente à margem dos planos do marido. Nesse sentido, é como se André Gide nos dissesse: não é possível seguir o caminho comunitário e o caminho propriamente individual, mas escolher, pois eles não são comunicáveis. Se há um sentido metafórico nessa dicotomia, Michel não tem dúvidas, toda a força do seu ser estar em se descobrir.
O autor também nos diz que há um caminho mais fácil, é só fazer o que está prescrito nos manuais impressos na nossa fachada durante anos de uma educação duvidosa. Porém, descobrir o que há por trás da fachada é uma das coisas mais fascinantes que pode existir, embora haja um preço a ser pago. A cena de Michel em sua última noite na Argélia; em Amalfi despindo-se nas pedras para sentir o sol em profusão percorrer o seu corpo e as conversas com Ménalque são algumas das cenas marcantes do livro; são reflexões e atos que alimentam a imaginação e a disposição, encorajando uma postura individual menos compassiva.
É surpreendente o conjunto de romances literários de sucesso comercial, replicando uma padronização socialmente aceita dos sentimentos e da intimidade. Tantos anos de frustração com tais padrões ainda não foram capazes de gerar um rompimento à altura, mas as opções no campo da arte contemporânea são menos propensas ao talento de um André Gide ou de um Eric Rohmer. As trilhas que levam a rotas mais pessoais da existência se comprimiram em prol das muitas que atendem às exigências da política ou do consumo de massas.