Yuri410 30/06/2020
O cheiro de cravo, a cor de canela
Publicado em 1958, "Gabriela, Cravo e Canela" é um dos romances mais célebres de Jorge Amado. A obra representa um ponto de virada na produção literária do autor, que até então abordava questões de cunho social, sendo o romance "Capitães da Areia" o mais renomado desse período. No que vem a ser a sua segunda fase literária, Amado produz variadas crônicas de costumes, definida por um universo povoado por jagunços, coronéis, prostitutas, trambiqueiros, beatas mexeriqueiras e mulheres comuns porém exuberantes, todos eles localizados em territórios da Bahia, cuja cultura, costumes e culinária também são descritos para o deleite dos leitores.
Aqui, o cenário é uma Ilhéus dos anos 20 em polvorosa com o progressismo caracterizado por uma vida litorâneo-urbana embrionária (mas não menos agitada) e sustentada pelas mundialmente famosas roças de cacau que movem, cheias de vapor, a economia local. Porém, esse ar progressista cai por terra através de uma lei que, com vigor, ainda impera no local. A trama começa com a descoberta de um caso extraconjugal. O noivo traído, o coronel Jesuíno Mendonça, toma imediatamente a única atitude socialmente esperada de um homem de sua posição: fuzila a esposa e o amante. A partir desse trágico acontecimento, o leitor passa a conhecer (e até a se familiarizar) com tipos carismáticos e singulares, como o turco Nacib, dono do frequentado bar Vesúvio, o tradicional coronel Ramiro Bastos e seu filho, o mulherengo Tonico Bastos, e o progressista Mundinho Falcão.
A sertaneja Gabriela, personagem-título, só aparece no final da segunda parte. Chegando a Ilhéus, a moça chama a atenção de Nacib, que a contrata como cozinheira em seu bar. Assim, sua incomparável beleza e seus dotes culinários chamam a atenção dos frequentadores do bar, cujo número de fregueses aumenta, e do próprio Nacib, com quem Gabriela vive um tórrido romance. Com seu ingênuo carisma, a moça também não passa despercebida pelos habitantes ilheenses. Desse modo, a presença agradável de Gabriela perfuma, encanta e vivifica não apenas a vida dos cidadãos de Ilhéus, como também as páginas dessa aprazível história, fazendo com que o leitor queira dançar e cantar a existência com a donzela do aroma do cravo e da cor da canela.
Mesmo tendo deixado de dar protagonismo às temáticas sociais em suas obras, aqui Jorge Amado não deixa de as expor, inserindo-as ao cotidiano dos personagens. É o caso das tensões políticas entre o conservadorismo e o progresso, do declínio do coronelismo, do machismo que oprime as filhas dos coronéis (perfeitamente delineado através da inconformada Malvina Tavares, que enfrenta o pai Melk Tavares em prol do sonho de estudar numa universidade, trabalhar e viver no sul do país - por sul na obra entenda-se a região Sudeste do país englobada - e, assim, ser dona do próprio destino e da própria vida) e do matrimônio como instituição social inalienável. Esse último tema é retratado através da vida de Nacib e Gabriela como casados, o que desgasta o relacionamento dos dois, uma vez que Nacib quer que Gabriela se comporte como uma dama da alta sociedade local, algo que Gabriela evidentemente não faz a mínima questão, com sua cativante e costumeira simplicidade.
"Gabriela, Cravo e Canela" foi uma dentre as várias obras de Jorge Amado (autor brasileiro mais adaptado para a TV e para o cinema) a serem adaptadas para o cinema e para a televisão através de duas versões, ambas no formato de telenovela. Tanto o filme de 1983 quanto a primeira versão feita pela Rede Globo em 1975 foram protagonizados por Sônia Braga, que teve a carreira catapultada pela personagem. A produção global tornou-se um fenômeno de audiência, sendo considerada como um dos maiores clássicos da emissora. Um remake, com autoria de Walcyr Carrasco e protagonizado por Juliana Paes, foi feito pela mesma emissora no ano de 2012, com expressivo sucesso junto ao público. Uma das músicas mais memoráveis na voz de Gal Costa chama-se "Modinha para Gabriela". Com essas informações, já dá para mensurar a relevância e o legado que a manceba com a fragrância do cravo e a tez de canela conquistou na literatura, na cultura e no imaginário nacional.