Eduardo 27/01/2019
Gabriela: adjetivo, verbo, substantivo, advérbio (de modo, principalmente)
É gabriela ou Gabriela? Já não dá para saber se Gabriela é substantivo ou adjetivo. E muito provavelmente também é verbo. Sendo uma pessoa, talvez não seja uma, seja muitas. Há incontáveis Marias e Joões por toda a parte que, no fundo, são gabrielas.
Ilhéus dos anos 20 é um retrato fiel de uma sociedade que teimava em não avançar; não por falta de influência, mas por excesso de barragem. Em uma sociedade ainda controlada por uma forte influência coronelista, vivendo uma realidade política tensa, sob sombras recentes do poder conquistado através da força, da corrupção e da morte, qualquer sinal de avanço se torna ameaça. O sinal de avanço, nesse caso, é Mundinho Falcão, grande idealista econômico e, durante a época em que a história se passa, iniciador de avanços políticos e sociais, candidato a enfrentar a arcaica política da cidade nas próximas eleições, esta representada pelo conservador coronel Ramiro Bastos. Por mais que o setor econômico de Ilhéus estivesse em constante avanço (principalmente devido ao cultivo do cacau), o mesmo não ocorria na área social, educacional e política. O desafio de enfrentar uma política suja, alicerçada sobre o voto de cabresto e alianças perigosas, exigiria certo esforço de Mundinho, mas o sujeito não estava sozinho.
Quando nos damos conta de que o debate político ocupa a maior parte da narrativa, pensamos "por que Gabriela no título?". É tão complicado dar uma resposta à essa simples questão porque, ao mesmo tempo em que Gabriela é causa, também ela é consequência. O cenário político não é pano de fundo, é parte da nova pintura de Ilhéus, desenhada por Gabriela, mas retocada por todos os outros personagens secundários. Não há como retocar algo que ainda não tem corpo. Explico mais adiante, se conseguir, porque não é uma tarefa fácil.
Não há sombra de Gabriela por um grande pedaço inicial da obra. É que até esse ponto Jorge Amado prepara o terreno.
O árabe Nacib, dono de um famoso bar da cidade, vê-se abandonado por sua cozinheira e em meio à necessidade de contratar uma nova. Retirantes se reúnem no mercado de "escravos" para que possam ser avaliados e, então, contratados. É de lá que Nacib traz Gabriela, ainda suja e maltratada pela longa caminhada, pelo calor e pela miséria. A nova cozinheira será então responsável pela preparação das comidas para o bar e pelas tarefas domésticas na casa de seu patrão. É a partir desse momento que Nacib descobre-se apaixonado pela linda moça, tão jeitosa e ingênua. Mas sua beleza e ingenuidade não despertam a atenção apenas do árabe; grande parte dos homens da cidade começa a desejá-la, a cortejá-la, sejam eles solteiros ou casados, afinal de contas, a honra deve ser respeitada apenas pelas mulheres, fato esse corroborado pela acomodável aceitação pública diante do assassinato de Sinhazinha e Osmundo pelo coronel Jesuíno Mendonça, que flagra sua esposa e o dentista na cama e justifica suas mortes como lavagem de honra, justificativa essa aceita inclusive pelas autoridades judiciais da cidade. Aliás, sendo essa uma das primeiras cenas do livro, serve de marco para a transformação que Gabriela trará à cidade.
Começam a partir de então os desenvolvimentos de diversas histórias paralelas, que ora se cruzam, ora não, algumas têm relação direta com Gabriela, outras nem tanto, mas sempre acabam pegando carona na onda de mudança que se abate timidamente sobre Ilhéus. Então conhecemos um pouco mais sobre os embates e todas as falcatruas envolvidas na política da cidade e de suas vizinhas. Acompanhamos também as alianças e impasses de Mundinho Falcão para conseguir construir a barra no porto de Ilhéus, que traria ainda mais progresso para a economia local, mas que, acima de tudo, alavancaria sua carreira política. Conhecemos também Malvina, filha do coronel Melk Tavares, que começa a se relacionar com um dos engenheiros de Mundinho e desperta a fúria do pai, mais um dos típicos defensores da honra familiar, desde que ela seja apenas respeitada por sua esposa e sua filha. Há ainda mais uma dezena de personagens, cada qual com suas histórias, suas tradições, suas desconfianças, seus segredos, e todos eles moldam o cotidiano da cidade, que é narrado de forma primorosa por Jorge Amado. Não há como não se deitar na rede com Nacib, não há como não estar nas pedras com Malvina, não há como não dançar descalço na rua com Gabriela...
Tanta gente, tanta história, tanto sangue e tanta glória, tantos mundos que não cruzam o mundo de Gabriela... Então por que Gabriela? Porque Gabriela é sinônimo para progresso, acima de tudo progresso social. Mas, quando há progresso social, todo o resto é consequência. Gabriela é influência, é a personificação de uma nova Ilhéus. Sua ingenuidade, sua leveza e sua sensibilidade exalam como perfume, e perfume de cravo. Não à toa, na linguagem das flores, o cravo pode ser desprezo, amor eterno, encantamento, não esquecer, amar sem que o outro perceba, coração partido e amor eterno. E tudo isso é Gabriela. Por que ela precisa ser o que os outros querem que ela seja? Por que ela não pode ser um cravo hoje, outro amanhã? Por que ser sujeitada a um homem, e não dona de suas próprias escolhas? Por que casada, se é feliz solteira? Por que sapatos, se gosta de andar descalça? Ela mostra, em sua humilde simplicidade e maneira de ver o mundo, que ninguém nasceu fadado a rótulos, que não precisa seguir preceitos e cerimônias, e acha isso tão simples que é incapaz de compreender como pode existir um mundo em que as pessoas se escondem atrás dos não-podes, disputando quem é mais feliz não podendo a maior quantidade de coisas possíveis.
Jorge Amado criou um livro atemporal, uma obra que atravessa gerações, cuja visão se perpetuará, e cuja protagonista merece todas as classes gramaticais possíveis para si. Malvina, ao enfrentar a fúria do pai em nome de sua felicidade e de seu direito de escolha, é Gabriela. Glória gabrielamente peita a cidade, fonte de tantas fofocas que a atingem. Nacib, em dado momento, se gabriela com seus próprios pensamentos e forma de ver as relações sociais. Mundinho Falcão começa a gabrielar uma nova política, uma nova forma de conduzir problemas econômicos e sociais em Ilhés.
Acho que posso me permitir adaptar um pouquinho de Chimamanda Ngozi Adichie para finalizar essa resenha, porque achei completamente adequado, afinal de contas, sejamos todos gabrielas, por que não?