Lucas1429 26/03/2024
Análise tipológica e axiomática do romance Gabriela Cravo e Canela
O premiado romance de Jorge Amado publicado em 1958 que obteve uma extensão mundial atribuída ao seu sucesso, sendo traduzida para mais de 30 idiomas, traz um caso estrutural do momento histórico no Brasil envolvendo política e desenvolvimento, assentando-se sobre um romance, a princípio simples, e no fim com a devida profundidade que conversa com todo o enredo da história. Gabriela Cravo e Canela é uma obra que pode ser encarada tanto como uma novela de formação, a exemplo dos clássicos machadianos, quanto como um documentário dos costumes, ou ainda, um romance dos costumes. Isto porque o livro traz as questões de época que se aplicavam ao povo brasileiro, mais especificamente ao nordeste brasileiro, onde exercia-se o poder dos mais fortes em detrimento da subserviência e sofrimento dos mais fracos, em termos econômicos e hierárquicos. A história circunda a década de 1920, em Ilhéus, litoral sul da Bahia, onde crescia exponencialmente os redutos de produção agrícola do ciclo do cacau. A cidade viveu nessa época um avanço em produção e venda das sacas de cacau, onde por trás do sucesso das plantações de terras, houve anteriormente a conquista destas mesmas terras pelas mãos dos coronéis e grandes fazendeiros, homens que lançaram mão de luta armada para a conquista destes terrenos, tendo como instrumento posse e aquisição os jagunços e homens de armas, ou seja, o jaguncismo era predecessor do brilho econômico da cidade por meio do ciclo do cacau. A obra, traz duas narrativas constantes e consoantes entre si. A primeira, um romance entre o árabe Nacib Saad, e uma retirante do norte do brasil, vinda com um grande grupo de outros retirantes para Ilhéus em busca de melhoria de vida por meio do trabalho braçal. Gabriela, recém-chegada a ilhéus, pertencente ao mercado de escravos numa paragem da cidade, fora contratada por Nacib sob a demanda de cozinheira, fato que se deu por conta da saída de Filomena, sua antiga cozinheira que pediu as contas, deixando o árabe em situação complicada devido à uma encomenda de grande almoço comemorativo das novas linhas de ônibus "marinetes" que ligavam Ilhéus à Itabuna, criadas pelo russo Jacob e Moacir Estrêla, empreendedores da região cacaueira. A segunda narrativa traz o destaque da cidade sobre a ótica econômica de dois pontos de vista diferentes, que são eles: as obras tradicionais de ruas, parques e praças, decorações e enfeites da cidade feitas pelo coronel Ramiro Bastos que representa na obra o antigo, o anterior, o costumeiro jeito de se fazer a administração da cidade, de forma compadrecista, exibindo os favores antigos dos amigos fazendeiros e coronéis que agora representam votos ao ancião chefe da administração da cidade. Vale destacar que nessa época não haviam prefeitos ou vereadores, para tudo isso bastava ao Intentente, isto é, Ramiro Bastos, todo o crédito e responsabilidade do município. O outro ponto de vista é a antropomorfização do avanço e do futuro do desenvolvimento, na pessoa de Mundinho Falcão, que aqui representa o novo, o progresso, que é o ideal para a continuidade da vida econômica da cidade. Assentando-se ambas as visões, pode-se observar que existe um antagonismo mútuo entre as relações de avanço e retrocesso na cidade. Esse embate é muito bem retratado pelo autor que traz para corroborar a narrativa, mais outros personagens de apoio, podendo ser descritos como "tipos sociais", que dão voz à vontade do autor de exprimir os desejos de ascensão econômica e social de uma cidade povoada por pessoas simples, fazendeiros e coronéis, circunscrevendo as anedotas que permeavam questões pontuais vividas na cidade, como assassinatos de homens traídos por mulheres, e também de questões políticas importantes como o caso da Barra de Ilhéus, que levava um estandarte de importâncias devido à sua dita capacidade de receber os cargueiros vindos do estrangeiro para possibilitar a exportação direta do cacau a partir de Ilhéus, e não mais da Bahia, como até então era feito. Nota-se a sutileza do autor em atribuir ao texto uma crônica romântica que exala uma enorme demanda de crescimento, uma necessidade que realmente aconteceu ali de alguém que visse os problemas da cidade, que pudesse ver os atrasos que incorriam em frear uma economia em plena expansão e onde se via muito acontecer as relações entre compadres, que como antigamente, trocavam favores entre si, alinhando suas expectativas, e vendo-se em determinado momento em embate com o que se chegava de novo ali na cidade, de novo, na pessoa de Mundinho Falcão. Uma análise sobre a relação entre Nacib e Gabriela, uma relação - a princípio de trabalho e depois misturada com obsessão e amor - mostra que todo o enredo, que se envolveu de alguma forma com esta personagem, isto é, Gabriela, é uma parte do povo do Brasil que também se deixa atrair com aquilo que tem uma boa aparência, visto que Gabriela ostentava muita beleza e sensualidade, tornando o povo facilmente manobrável às mais simplórias e pífias ações humanas, como a sujeição, a sedução, o carrancismo, os vícios, a concupiscência, enfim, tudo o que subjuga o povo a um patamar inferior. Não é esta análise uma crítica à personagem. Apenas apresenta uma das faces que o autor quis trazer à luz na obra. A outra face é a simplicidade, pureza que Gabriela apresenta ao não se apegar às "tentações" dos demais todos os outros homens da cidade a lhe assediar. Denota-se um desprendimento da personagem que nem a Nacib teve um definitivo apego emocional, pode-se dizer que apenas intuitivo, esse destacamento do amor, conversa com o sentido intencional puro de uma relação entre o homem e uma mulher, o que é muito curioso porque ao mesmo tempo, no livro, as mulheres na grande maioria das cenas, são tidas como "objetos", e apenas servem para satisfazer aos desejos do homem. Nota-se neste ponto o contraste proposital do autor em apresentar duas questões sobre a mulher naquela época, a primeira: sendo ela um objeto, estaria ela isenta de ser pura? A segunda: é um objetivo realizar os próprios projetos tendo como fim servir aos homens, ou servir aos homens é um projeto tendo como fim realizar os próprios objetivos? Á segunda questão o autor utilizou uma segunda personagem, Malvina. Filha do coronel Melk Tavares, a estudante personaliza uma geração que se realiza pelo descobrimento e a auto independência. No primeiro momento, Malvina se envolve com um engenheiro trazido do Rio de Janeiro, chamado Rômulo Vieira, homem casado e sedutor de quinta categoria, principalmente pelo seu descompromisso com os afazeres do trabalho e sua dedicação ao mulherio. Rômulo é o canal que o autor utiliza para trazer Malvina como um objeto de seu desejo. Neste ponto vê-se mesmo a mulher como mero objeto, uma vez que Malvina se envolve com homem casado, claramente mal-intencionado, superficial, e com desejo apenas de levá-la para a cama. A ruptura de Malvina de ser objeto e passar-se a ser independente, se deu após o escândalo que a cidade viveu ao ver seu pai descobrir os amantes na praça e após isso, surrar a filha em casa. Isto porquê a personagem viu que era necessário passar pelo estágio de objeto para evidenciar sua real natureza independente, a de mulher que irá atender aos próprios projetos e desejos, vindo depois a fugir e viver de forma autônoma, trabalhando em São Paulo posteriormente. A esta segunda questão o autor revela resposta pelo segundo enunciado: "servir aos homens é um projeto tendo como fim realizar os próprios objetivos". À primeira questão o autor usou a própria Gabriela. Ao longo do enredo, nota-se na personagem a sua pureza no desejar, e seu pleno estado de satisfação com o que há de mais simples como "deitar com moço bonito", "servir Nacib". Pode-se até mesmo notar que existe uma sutileza do autor em trazer as características corporais de Gabriela, destacando o Cravo como senso olfativo que acende o desejo do homem, e a canela que traz a cor de sua pele e o sabor adocicado de suas mãos na cozinha, no trato, nas carícias. Todas estas características são a base do instinto do homem com relação à conquista. Aqui, Gabriela é a pura encarnação do ânimo dos homens, despertando-lhes o desejo e a vitalidade brutal de homens que precisam garantir o objeto de desejo para si, ou seja, de garantir Gabriela para si. No entanto, o desejo destes homens não corrompe a verdadeira essência e pureza da personagem, uma vez que recusara todos os assédios que recebeu ao longo de toda a história, preferindo por pura meninice e vontade espontânea de espírito, ficar ao lado de Nacib. A isto o autor responde a primeira pergunta: "ela não estaria isenta de ser pura, ao contrário, sua pureza já havia antes e após ser um objeto dos homens", isso porque os homens produziram a fantasia que a tornaram seu objeto, a realidade era que Gabriela sempre fora pura, e não se corrompeu o seu espírito no correr da trama. Gabriela Cravo e Canela tem como agentes portanto as duas questões apresentadas, o romance entre Gabriela e Nacib e o ambiente causal e político de Ilhéus por meio dos coronéis e exportadores, seus reagentes são iguais, pois avançam diretamente proporcionais às causas e efeitos de suas ações ao longo da história, os amantes sofrendo suas desilusões amorosas e aprendendo a lidar com seus sentimentos, e os políticos que operavam o poder por meios escusos e questionáveis, agora aprendendo a ceder espaço ao avanço em benefício da própria cidade e de seus herdeiros. Via a cidade ganhar os ares de crescimento e avanço econômico ao mesmo tempo em que os personagens cresciam como pessoas, tendo como maior benefício seu psicológico melhor desenvolvido sobre questões como o amor e o ódio. Jorge Amado faz jus ao tamanho da repercussão que sua obra recebeu. De fato, o livro é um excepcional retrato do Brasil de 1920, e uma ótima novela de formação que encanta e adverte em igual proporção.