Iarelena 20/06/2012
A menina que não morre
Gabriela é linda. Mas é tão linda, mas tão linda, que se arrebenta e se explode em si de beleza. Ela rompe aquela primeira barreira que as mulheres ligeiramente bonitas alcançam, que é a de gerar inveja e ciúme nas outras mulheres. No caso dela, o ciúme é até justificado, mas realmente não vem ao caso. Ela é linda de tal maneira que isso, o ciúme, a inveja, ficam pequenos. Ou, pelo menos, menores que suas ancas.
Ela é linda porque gera beleza ao seu entorno. Ela é musicalidade, mas não é qualquer musicalidade. Ela é aquela brincadeira de samba de roda, com um quê de baião, e é ginga. É sorriso sincero e sem tamanho, felicidade por pouco. Felicidade que não precisa de grandes motivações, porque ela não precisa ser gerada: Ela nunca deixa de ser. Não é o riso de desespero, que esconde qualquer coisa, ou talvez até o seja, mas que deixa essa qualquer coisa a ser escondida pra trás tão longe que nem mais escondida fica. Fica à mostra, aos olhos de quem quer ver. Qualquer um que queira efetivamente ver. E, ao mesmo tempo, que não se impõe.
Ela é uma mocinha de aproximadamente 17 anos, e embora não se ofendesse se eu a chamasse de ninfeta e não entendesse -, eu não gostaria de chamar. Porque ser ninfeta pressupõe uma série de quesitos aos quais ela deveria preencher, e Gabriela não lida muito bem com bandeiras, com papéis. Ela só é. Ela é uma mocinha que provavelmente é nordestina, embora não se saiba bem de onde. É de um lugar que já nem há. Nova que só, já passou por muita coisa. Aprendeu muita coisa. E não sabe coisa alguma. Gabriela quer, apenas, um teto, um pouco de água, um pouco de comida, uma flor no cabelo, os carinhos de um moço bonito, os olhares de frete dos moços.
Não lhe importam as águas de cheiro, os sapatos altos, jóias, maquiagem, luxo, roupas caras. Não lhe importa a política, a emancipação feminina, o cacau no pé, o cacau no banco, a economia, a velhice, o futuro... Ela serve ao seu patrão, e é isso que ela faz. Ela serve às bocas da cidade, com seu sabor inconfundível. Ela serve aos olhos dos homens, e ao seu quase toque... Ok, eventualmente, a alguns toques. Com gosto, ela serve. Ela serve ao seu moço bonito então... Com um prazer que faria corar. Não diria submissa porque os rótulos não cabem em Gabriela, e esse logo falharia também: Ela serve, principalmente aos seus desejos. Deles, é cativa. E, com isso, sem querer e sem saber, contesta sim a grande ordem, faz barulho, e ais de amor. Ela quer sexo. Ela quer ser desejada. Ela não quer casar. Ela prefere samba à festas de sociedade, e tira o sapato e vai correndo de uma a outra. Essa é a nossa menina. Ela serve-se de si, e como não é egoísta, serve aos outros e dos outros também. E não é isso o tal do amor, e do amor ao próximo?
E isso é o livro. O livro é Gabriela. O resto? Cenas de Ilhéus, com briga de poderes entre uma frente de fazendeiros de Cacau e um liberal vindo da cidade. Causas aqui, bandeiras acolá. Tudo o que existe em tantas outras obras, e que me perdoe Jorge Amado, mas sei que ele amou Gabriela tanto quanto eu. E eu digo de cadeira: Tudo isso é interessante, sim. Ilhéus é apaixonante. A Bahia, como diz Caetano, tem um jeito... E, como completaria Caymmi, que nenhuma terra tem. E a trama política, o assassinato, tudo isso é primoroso. Mas é sufocado pelo cheiro de cravo que emana de Gabriela. É ela de quem se quer saber. E, como Nacib, perdidos em seu encanto, que caminhamos pelas páginas.
Nacib é um moço bonito, apesar de não ser exatamente bonito. Ele não é um bonito galanesco, e nem tão moço... Tem barriga, faces cravadas e brutas de sírio. Mas em expressões tão doces, e comportamento de mel, que é bem quisto por todos os lados de todas as batalhas. Nacib é boa praça, mas não só. É boa gente, mas não só. E é tão bonito que compensa o fato de não ser bonito de todo. E, como todos, se apaixona por Gabriela. E no meio de seus dilemas machos, que não cabem aqui porque há que se ler o livro, e no meio de sua consciência tão síria e tão brasileira, percorre com a nossa menina uma jornada de amor, de aceitação das diferenças, de superação dos limites sociais e das regras comportamentais em busca dos desejos pessoais. É uma linda jornada de se acompanhar, enquanto se espera na espreita para ver Gabriela desnudar-se.
Porque é a linda Gabriela que queremos ver quando lemos esse livro. Ao menos eu. No meu caso, não tanto com a fome dos moços. Mas por ser tomada por sua beleza de alguma forma. Porque, retomando lá no início, ela é de uma lindeza tão abrangente, e tão abundante, e tão não mesquinha, que nos faz buscar em nós mesmos essa beleza. Que é dela e nossa. Se aos homens, o argumento de tê-la já parece o suficiente, para as mulheres ele é similar, mas com uma diferença fundamental. O argumento é tê-la... Dentro de si. Gabriela é a menina que descobre o amor, que gosta de se envaidecer com a própria beleza um pouco. Que não liga pra dinheiro, pro cartão de crédito, pro casamento, pra velhice, que não faz previdência social, que nem sabe o que isso é, que não entende de impostos. Gabriela não quer casar com o príncipe para jamais precisar ser rainha de nada. Traz só suas chinelas velhas, seus trapos, uma flor do meio do caminho e ela. E... Bom, nós temos tudo isso. O namorado, o marido, a fidelidade, as contas, as preocupações, os projetos ao longo prazo, um perfume, um ouro, uma roupinha, uma maquiagem, uma mesquinharia, um ciúme... Mas também Gabriela, com tudo o que ela pressupõe. Ela, aquela voz maliciosa de querer dizer vem, quando você diz não quero mais te ver. Ela, aquele sorriso descarado depois de ouvir um gracejo sórdido. Ela, a menina de chinela em nós que não morre nunca, por mais que tentemos matar dia a dia. Ela, aquela flor desengonçada que você põe no cabelo, aquele vestido simples e o cabelo não-escovado.
Ela...
Jorge a trouxe à tona. Para nós.