Paulo 11/06/2017
A ficção científica é um gênero que nos faz pensar sobre quem somos e qual é o nosso lugar no Universo. Autores como Ray Bradbury, George Orwell, Aldous Huxley e Isaac Asimov escreveram clássicos que até hoje são referência até mesmo em salas de aula. Mas, ultimamente não temos muitos autores a trabalharem com este tipo de literatura mais reflexiva. Aurora de Kim Stanley Robinson é uma das raras exceções diante de tantas distopias e entropias que nada acrescentam ao leitor.
Os colonos em Saturno construíram várias naves com o intuito de espalharem a civilização humana pelo espaço. Nós acompanhamos uma dessas naves que segue em direção a Tau Ceti para colonizarem uma lua que orbita em torno de um planeta deste sistema solar. Esta lua teria todas as condições para que os seres humanos poderem colonizar e conseguirem povoar uma nova região do espaço. A viagem até Tau Ceti está levando mais de 180 anos e contando. Somos apresentados à Devi, Badim e Freya, nossos protagonistas junto da própria IA da nave que nos mostrarão todas as dificuldades da conquista de um novo sistema solar.
E eu não vou fazer uma sinopse maior do que essa até porque é complicado não entregar muitos spoilers. Antes de mais nada: que livro!! Palmas lentas para Kim Stanley Robinson que depois de eu ler o segundo livro dele já se tornou um dos meus autores de sci-fi favoritos. Entretanto, Aurora não é um livro para qualquer leitor. É claramente um hard sci-fi, ou seja, uma ficção científica que trabalha altos conceitos e pode incomodar os leitores em busca de uma aventura mais simples e direta. O autor não facilita e até chega a explicar os seus conceitos de uma maneira tranquila. Eu que não sou cientista e nem muito interessado consegui entender as associações e reflexões colocadas pelo autor. Os trechos em que ele explica elementos científicos são extensos e descritivos; porém, isso é algo esperado e característico de Kim Stanley Robinson. Em Red Mars, o desenvolvimento do enredo é o mesmo e até depende dessas análises científicas.
O que mais me agradou foi a IA da nave que rapidamente se tornou a protagonista da história. Devi se senta com a IA para discutir as formas como a nave iria registrar a história dos colonos. E vamos ver uma sequência de capítulos em que a nave vai estudar métodos narrativos. Robinson colocou muito bem as dificuldades de um sistema preciso contar uma história não tão precisa sobre uma quantidade absurda de seres humanos com trajetórias variadas. Até mesmo que temas ou acontecimentos devem receber maior destaque representam pontos de dificuldade. A nave também se destaca por tentar compreender como funciona o raciocínio humano e seus determinados comportamentos. O recurso à violência em situações desesperadoras, a falta de união em certos momentos, as alegrias fúteis e tolas, porém encantadoras. Alguns relatos e reflexões da nave são de fazer com que nós pensemos sobre a maneira como temos determinadas atitudes que são estranhas do ponto de vista de uma máquina. No final da história, a nave é quase tão humana como nós e a felicidade que ela tem ao cumprir sua missão principal é emocionante.
A protagonista humana é Freya, filha de Devi e Badim. Aparentemente ela possui alguma dificuldade para estabelecer seus raciocínios, causado por uma evolução contrária. Isso porque os homens passam muitas centenas de anos presos em uma nave que possui seus biomas próprias e o homem acaba se adaptando a esse ambiente. Interessante como o autor nos faz pensar de maneira contrária, pois em um ambiente fechado e não desafiador o homem acaba sofrendo uma evolução ao contrário, provocando uma série de doenças e síndromes que seriam simples de serem resolvidas pela humanidade. Aliás, essa análise bioquímica é extremamente interessante nos mostrando vários lados que nunca passariam pelas nossas cabeças durante uma conquista espacial. Claro que temos muitos elementos de sci-fi na história, mas várias de suas análises tem um pé na realidade. Isso é o que causa maior assombro.
Assim como Asimov, Robinson desenvolve suas personagens femininas até certo ponto. A riqueza da escrita de Robinson realmente está em suas ideias e não em seu desenvolvimento de personagens. O leitor até passa a se relacionar bem com os personagens, mas eles acabam sendo deixados de lado na metade da história. Eu gostei da parte final na praia e entendi muito depois a razão daquela parte existir. Freya é uma humana normal; ela até tenta se especializar em alguma coisa, mas ela vai servir mais como os nossos olhos dentro da história. O choque cultural que ela tem na parte final da história mostra como a vida dentro da nave impacta a maneira como o resto dos viajantes espaciais encaravam sua viagem após séculos de existência dentro daquele espaço fechado.
O autor é o mestre da terraformação. Eu já tinha ficado impressionado em Red Mars, mas aqui ele se superou completamente. Ele conseguiu fazer com que o leitor compreendesse as várias dificuldades e obstáculos para a transformação de um mundo para a ocupação de um terráqueo. Desde o cultivo de alimentos, à análise do solo, à qualidade do ar... meu deus... são tantas variáveis a serem levadas em consideração que eu duvido que um homem sozinho consiga computar tantos elementos.
Aurora é uma obra fantástica, de um nível de reflexão inimaginável. Até este momento aqui eu estou tentando elencar tudo o que eu pude retirar do livro e acho que eu faria uma resenha enorme para tal. Decidi abarcar apenas alguns desses temas. Para mim, Kim Stanley Robinson tem o mesmo alcance no século XXI que Asimov teve na década de 60 do século passado. É o mestre das ideias do sci-fi. Mas, novamente, não é um livro para todos por conta da própria proposta do autor.
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