spoiler visualizartalvezthiago 01/01/2023
"Entro no quarto escuro, não acendo a luz, quero o escuro". A primeira frase de As horas nuas introduz muito bem a personagem principal do romance. Rosa Ambrósio caminha tropeçando em acontecimentos da sua vida num quarto escuro e não quer sair de lá, tão apegada ao próprio passado.
Fiz uma maratona de livros da Lygia porque encontrei exemplares de algumas edições da editora Rocco no sebo por um preço barato. Li A disciplina do amor, Invenção e memória e As horas nuas em sequência. Meu único contato com a obra dela até então havia sido com Antes do baile verde, um livro de contos.
Foi, então, o primeiro romance que li de Lygia. Acostumado com as suas narrativas de contos, mais impessoais e naturalmente menos aprofundadas (não menos notáveis, a propósito), enquanto avançava na leitura fui ficando cada vez mais impressionado com a complexidade da protagonista. A narrativa fragmentada é fundamental na construção dessa complexidade. A falta de linearidade possibilita que o desenvolvimento da personagem e a ambientação daquele mundo fossem intercalados com acontecimentos do passado, tornando a apreensão do enredo lenta, porém muito profunda.
Rosa Ambrósio como expressão da artista decadente de classe média alta em crise. O gato Rahul como antagonista. Miguel, Gregório e Diogo, os homens de Rosa. A misteriosa Ananta, a analista de Rosa. A filha Cordélia, invejada pela mãe por ser jovem. A amiga Lili, com quem não parece ser tão afável. Todas essas pessoas servem para contar a história de uma só personagem: Rosa Ambrósio. No quarto escuro, Rosa se enovela no seu passado e foge do presente bebendo e delirando com a volta do Diogo.
Só saímos desse quarto quando o gato começa a narrar. Nos distanciamos um pouco de Rosona e conseguimos vislumbrar o plano geral. Conhecemos melhor Gregório, ficamos sabendo de detalhes que Rosa não contaria. Ao voltar para a narração de Rosa conseguimos identificar de cara como as narrações se diferenciam. O gato exerce um importante papel na nossa compreensão da história.
É interessante mencionar a busca de Renato Medrado por sua prima, na reta final, que se diferencia em forma do que liamos até então. A trama ganha contornos policiais de uma hora para outra. E eu adorei. Fiquei sedento por mais, mas infelizmente terminamos cedo e sem resposta.
Por fim, frases que gostaria de destacar:
"Tão estranho isso, o Gregório não acreditava em Deus mas parecia completamente impregnado Dele.";
"Acho que andava triste comigo mas quem aprendeu tanto devia perdoar quem sabe tão pouco.";
"A gente vai perdendo. Perdendo uma coisa atrás da outra, primeiro, a inocência, tanto fervor.";
A confiança e a esperança. Os dentes e a paciência, cabelos e casas, dedos e anéis, gentes e pentes.";
"Bebeu, amou e se afogou.";
"Queria tanto enlouquecer, Diú, não morrer, mas enlouquecer, vou me desintegrando sem pressa, um pé no mar, outro no telhado. A cara na nuvem e o rabo só Deus sabe onde vai parar.";
"Teria que descobrir a morte enquanto vivo, antes de entrar no labirinto de onde só poderei sair morrendo de novo. Para retornar - quem sabe? - na poeira de outras vidas.";
"Ele parecia eterno e foi morrer.";
"A única vantagem do bicho sobre os homens é a inconsciência da morte e da morte estou consciente.";
"Pensei na mamãe explicando que certas feridas que parecem fechadas explodem da noite para o dia como a rosa-gangrena do joelho de tia Ana, era diabética.";
"Por que não começa agora a vida que te resta?" e
"[…] em torno dele tem que haver sempre uma dúvida porque assim são os seres extraterrenos, chegam e partem nas nebulosas."
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