Luigi.Schinzari 26/11/2020
Sobre Escritos da Casa Morta de Dostoiévski:
Uma obra-prima não surge por acaso. Antes de amadurecer suas técnicas, um gênio em sua área deve maturar suas capacidades e intelecto com a prática constante de sua arte: antes de fazer Um Corpo que Cai, Hitchcock tinha diversas pérolas como Janela Indiscreta e Festim Diabólico espalhadas por seu brilhante currículo; antes de Sgt. Pepper, os Beatles gravaram Rubber Soul e definitivamente refinaram seu estilo, preparando terreno para sua obra-prima; Da Vinci pintou uma dúzia de quadros antes de chegar à Mona Lisa; e o resto é história. Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), antes de tecer suas maiores contribuições para a literatura com obras como Crime e Castigo(1866), Os Demônios(1871) e, na minha opinião, o ápice de sua escrita, Os Irmãos Karamázov(1880), deixou todo seu plano futuro exposto em cada uma das páginas de seu romance semiautobiográfico Escritos da Casa Morta (no original em russo: ??????? ?? ???????? ????, Zapiski iz Myortvovo doma), publicado entre 1860 e 1862 na Rússia; não foi à toa: quem for ler a obra perceberá cada traço da genialidade de suas futuras obras e, em retrospecto, do retrato de sua carreira como um todo.
A história retrata as experiências do autor durante sua prisão na Sibéria, camuflada por um personagem que não é o autor, Alexandr Pietróvitch, que, diferentemente de Dostoiévski, que foi preso por conspirar contra o governo tzarista junto a um círculo revolucionário, foi levado ao cárcere por matar sua mulher. Logo no começo, o autor conta que descobriu os cadernos de Alexandr e que este já se encontra morto àquela altura. Nas anotações, são contadas as mais diversas experiências vividas em seu período encarcerado, dos momentos prazerosos encontrados em meio àquele ambiente funesto e morto até as situações de abuso das autoridades responsáveis pelo presídio e da mentalidade deturpada de alguns presos, sejam seus companheiros ou seus desafetos.
São muitos os temas abordados em cada passagem de Escritos da Casa Morta: seguindo praticamente o formato de contos, Dostoiévski pincela emoções das mais sutis às mais extremadas no panorama que quer retratar em sua obra, reunindo momentos, diálogos e trejeitos que compilou ao longo dos dez anos em que esteve preso -- juntando seu cárcere e a pena comutada em serviço militar obrigatório -- em seu Caderno Siberiano, espécie de diário em que compilava, in loco e no calor do momento, o que acreditava ser interessante para exprimir em palavras as sensações e experiências que tinha na Fortaleza de Omsk, local em que ficou aprisionado entre 1850 e 1854. Por conta disso, tudo nas páginas de Escritos é muito real e soa verossímil mesmo quando, em outros casos, pareceriam uma trama de cárcere folhetinesca.
Momentos de brutalidade extrema, contados pelos próprios criminosos que os cometeram, experiências bestiais do homem para com o homem são o laboratório do autor para desenvolver os temas que quer abordar na obra. A mente do criminoso expande suas raízes sobre temas como a razão real do crime, se há ou não um motivo devido para se cometer um crime -- temas que seriam aprofundados em Crime e Castigo --, a postura do homem em relação a fé quando está diante de injustiças de Deus para com o homem, se há ou não liberdade -- cerne de Irmãos Karamázov --, qual a pena devida para tal crime, indagações sobre ser justo ou não dar a mesma punição para crimes diferentes e tantos outros tópicos, traçados com maestria por um escritor que tinha muito bem delimitada em sua mente aquilo que queria dizer, tanto diretamente como de forma implícita instigada pelas sensações que a leitura causa no leitor sem, muitas vezes, este mesmo perceber que está sendo manipulado pelo autor -- talvez essa característica, aliás, seja o que diferencia um autor medíocre de um que ficará marcado na história, e definitivamente Dostoiévski é um daqueles que mais habita e continuará habitando a mente dos leitores de todos os tempos.
Um exemplo dessa subjetividade que o autor expressa de forma imperceptível, inicialmente, ao leitor é a passagem do tempo, que começa arrastando o primeiro dia de cárcere de Alexandr por dezenas de páginas, enquanto com o passar da vivência na prisão os lapsos vão se estendendo e o autor é obrigado a pontuar passagens mais marcantes e necessárias para retratar aquilo que quer contar -- semelhante ao recurso usado por Thomas Mann, admirador da obra de Dostoiévski, em sua A Montanha Mágica; fica a seu critério, leitor, decidir se ouve ou não uma inspiração dessa obra --, mostrando quão ordinária a vida se torna mesmo diante daquela quebra abrupta na linearidade da rotina, sendo o homem um animal tão adaptável a suas condições, mesmo aquelas mais desumanas; aliás, desumanas são, mas o autor pouco trata sobre ser justa ou não: com raras exceções, os homens que ali estão presos são criminosos brutais, mas a visão de Dostoiévski vai além dessa delimitação básica sobre a bondade ou maldade do homem ao espalhar por cada prisioneiro personalidades distintas e complexas que vão além de seus crimes; não liga para o criminoso, pois isto é apenas uma faceta de seu caráter, em resumo.
É com uma obra como Escritos da Casa Morta que Dostoiévski eleva-se em relação aos seus semelhantes. Tudo o que tornaria o autor célebre -- seu pioneirismo psicológico, dando prosseguimento ao trabalho nesse campo de autores como Stendhal e ampliando-o de forma nunca antes feita; a forma realista de retratar suas personagens e acontecimentos, as questões sobre fé, liberdade e o homem como um todo --, tudo está aqui, mesmo que de forma sutil, dando uma piscadela para seu fiel leitor que já conhece o restante de sua obra e acenando para aquele que está acompanhando-a cronologicamente, dando uma prévia da hecatombe que estaria para explodir em seus futuros livros. E mesmo com tudo isso, Dostoiévski não esgota toda sua munição em uma única obra como um autor menos experiente faria, deixando a arma carregada para futuros tiros que, como sabemos, seriam certeiros.