Michele Soares 22/01/2021
Pequeno ensaio sherlockiano: Sobre o grotesco e o trágico em mel e vinho
Não vejo melhor maneira de começar esta resenha, se não postergando-a ao fazer algumas considerações sobre a minha área de estudo e especialidade, a poesia grega antiga. Em um mundo de inconstâncias e incertezas, no qual a guerra é antes o prosaico, que o extraordinário, a morte foi um tema extensivamente tratado na literatura de todos os períodos. Entretanto, antes de qualquer coisa, adianto que a temática da morte não é um tema exclusivamente grego, mas ao contrário, nós somos obrigados a encarar a sua face desde a aurora de nossa existência sobre a terra, seja encará-la para abraçar, quanto para tentar escapar dela. É válido pontuar que o primeiro poema épico de que temos fragmentos é justamente a "Epopeia de Gilgamesh", com seus temas de morte e imortalidade. Rouxinóis mais sábios há milênios cantam o óbvio de que tudo o que nasce está imediatamente condenado a morrer. O motivo da morte prematura gerou na poesia os mais belos epigramas, os mais pungentes trenos (canções gregas de lamento fúnebre), os mais comoventes epinícios, poemas épicos, canções... Porém, para uma morte chegada em decorrência de uma avançada velhice, seria conveniente reagir com a mesma intensidade de mesmo lamento e dor? Epigramas para pessoas que morreram de velhice eram raros e mesmo nos dias atuais, consola-se uma pessoa que perdeu um ente já idoso, enfatizando não a dor da sua morte, mas o aproveitamento de sua vida: "Ao menos ele viveu bastante".
Antes de morrer, é claro, estamos condenados a envelhecer. A poesia grega igualmente abordou o assunto de forma dorida e delicada - de Mimnermo e seu lamento a Afrodite, até Safo e sua "Canção sobre a velhice". Com esta micro incursão pela poesia grega, planejo apenas exemplificar como este tema não é nenhuma novidade em literatura e na vida - também ela uma espécie curiosa de livro, como outros já bem notaram. Acontece que ao ler o "Prefácio" do livro "Os últimos casos de Sherlock Holmes", fui logo tomada por uma compreensão súbita e dolorosa, ainda que inevitável: para uma história que à todo custo tenta escapar das orlas da ficção, fincando suas raízes em algo mais próximo do gênero memorialístico/biográfico é de se esperar que as questões mais seculares da nossa existência sejam retratadas em algum nível também no arco narrativo que engloba as aventuras de Sherlock Holmes e seu amigo John Watson. Nada de mortes heróicas no ápice da juventude ? não, nenhum Aquiles em Reichenbach, podem ir embora. Neste livro, somos lembrados que, antes de morrer, se envelhece. O "Prefácio" cumpre o papel de anunciar que Sherlock Holmes está velho e que seus hábitos já se distanciam muito daqueles da sua juventude. Isso, entretanto, tampouco é novidade, considerando que seu destino é brevemente antecipado por Watson, sempre olhando em retrospecto, no primeiro parágrafo de um conto chamado "A segunda mancha". A constatação nem por isso deixa de despertar menos simpatia por parte do leitor aficionado.
Este livro, portanto, tal como os outros, encena o passado e, especialmente, um passado de casos que considero de excelente qualidade. Destaco entre aqueles que me chamaram a atenção: "O caso dos planos do Bruce-Partington"; "O caso do detetive agonizante"; "O caso do pé do diabo" e o emblemático "Sua última mesura: um epílogo para Sherlock Holmes". Avançando de peça em peça, as razões de apreciação não são das mais complexas. Em Bruce-Partington temos a segunda aparição de Mycroft Holmes, sendo a primeira e até então única no conto "O intérprete grego". Neste caso, estão envolvidos os personagens clássicos ? Sherlock, Watson, Mycroft e Lestrade ?, o que por si só já seria motivo de interesse, caso o episódio em si narrado não fosse interessante. Em detetive agonizante, temos um caso dos mais curiosos e dos mais sombrios, um no qual Sherlock parece estar vivendo seus últimos minutos. Afinal, um Aquiles de fato ameaçava sondar, não Reinchenbach, mas a velha Baker Street, aparentando morrer prematuramente de uma contaminação por uma infeliz bactéria de origem oriental, hipercontagiosa, que, infelizmente, ao menos no momento em que escrevo esta resenha, receio que conheçamos melhor a sua agonia do que qualquer outro leitor em qualquer tempo. Sherlock agoniza e com ele Watson e com eles o leitor ? é grotesco e trágico se insinuando e logo adiante voltarei a mencionar estas duas palavras, guarde-as no bolso da camisa, por favor. Esses casos que mencionei também me remeteram às suas adaptações na série que me incutiu essa vertigem sherlockiana, a série "Sherlock" da BBC. Os episódios que correspondem a cada conto, respectivamente, são o S01E03, "The Great Game", no qual a adaptação de Bruce-Partington é marginalmente tratada, ao contrário do caso seguinte que é levado às telas no S04EP02, "The Lying Detective". ainda que elevado à enésima potência em magnitude e gravidade. Já o caso do pé do diabo é um mistério instigante, cuja atmosfera me lembrou vagamente a da Devonshire tratada em "O Cão dos Baskerville". Novamente, as melhores palavras para definir esta história são "grotesco" e "trágico". Sherlock e Watson as mencionam pela primeira vez no diálogo que dá início ao primeiro conto do livro, "O caso da Vila Glicínia"
" ? Eu acho, Watson, que podemos considerá-lo um homem de letras ? ele disse ? como você definiria a palavra 'grotesca'?
? Estranho, notável ? eu sugeri
? Com certeza há algo mais do que isso ? ele disse ? uma implicação do trágico e do terrível. Se você se lembrar de algumas das narrativas que têm impingido a um público paciente, vai perceber com frequência o grotesco tem se transformado no criminoso.".
Bingo. Na primeira página está o tom dos contos que irão compor este volume de histórias. Mais algumas observações jazem por fazer, entre elas o aspecto do Holmes-juiz dos-próprios-casos, que, por vezes, escolhe ou não o que delatar à polícia (algo que não acontece pela primeira vez neste livro), tal como algumas notas esparsas sobre cada vez mais demonstrações de afeto de Sherlock para com Watson, algo que parece, por vezes, surpreender e emocionar o próprio Watson. Até o momento, em nenhuma de minhas resenhas cheguei a comentar sobre o sentimentalismo de Sherlock, que, por certo, nunca amou romanticamente, mas que também não é, nem de longe, a máquina sem sentimentos e sem qualquer tato social, conforme a série "Sherlock" retrata nas primeiras temporadas. Ele é charmoso, elegante, sabe conversar com as mulheres, sabe fazer amigos de todas as classes com o intuito de extrair suas informações para os casos. Definitivamente, ele possui tato social, habilmente aplicado quando de seu interesse, o que, é claro, não anula a sua arrogância típica perante àqueles que lhe são intelectualmente inferiores. Com Watson, entretanto, Sherlock parece ter seu coração cada vez amolecido pelo tempo ? pede-lhe desculpas sinceras, convida-o para um vinho, agradece-o por salvar sua vida... Os olhos de Watson se embaçam e os meus também. Não havia parado para ponderar sobre esta dimensão de simpatia partilhada, até as últimas páginas do livro.
Sei que me alongo, caro leitor, e quando não foi assim? Mas não podia deixar de comentar o último conto sobre o último caso de Sherlock. Espanto e empolgação me tomaram, pois, em dimensões temporais, não imaginei que a narrativa se estendesse até tão longe no tempo, chegando ao raiar da Primeira Guerra Mundial em 1914. É um conto de mais ação que mistério e nele me emocionaram o reencontro dos personagens, que, segundo nota da minha edição, se viram pela última vez em 1903, até o encontro de 1914. Eles mesmos mal se reconhecem entre os fios cinzas, entre as rugas que já não são mais parte de um dos disfarces de Sherlock, mas são antes a sua própria natureza. Neste conto, Sherlock é arrancado de suas abelhas e de sua aposentadoria em prol de seu último caso e não pude deixar de notar como narra-o uma voz impessoal característica de trechos dos romances de Doyle, aquela voz onisciente, distanciada e desta vez, explicitamente descolada de Watson, que é então apenas um personagem, no seu local de personagem. Como um deus tomando as rédeas de sua criação, afirmando-a doyliana e não sherlockiana, atribuo essa voz ao próprio Doyle. Com este caso singular, o último antes que o vento leste se aproxime, manchando o céu azul com vermelho e laranja vivo e bombas, nos distanciamos, lentamente, deixando os velhos amigos na companhia um do outro, além do vinho - por que não? - duplamente melífluo.