Matheus 28/02/2013
Um Gênio chamado João Guimarães Rosa
Tomei a liberdade de começar esta resenha da mesma forma que comecei a de Primeiras Estórias afinal, o Gênio é o mesmo.
Muitos são da opinião que Machado de Assis é o deus da literatura portuguesa, ou até universal. Assim também eu achava; até ler Guimarães Rosa. Provavelmente, só não é unanime a opinião de lhe conceder o posto de primeiro lugar na literatura, porque poucos são os que leem seus livros. Paira um ar intimidador sobre as obras desse escritor e a maioria das pessoas não se sentem capazes de pega-las para ler. No entanto, nada justifica esse receio e a intimidação dos livros de Guimarães existe mais pela conversa fiada de professores de literatura do que por um estilo difícil de entender. De fato, logo na escola os professores falam que, de inicio, parece estar-se lendo em outra língua, e a quase totalidade dos alunos caem no equivoco de pressupor que essa outra língua e impossível.
Sim, com certeza Rosa não escreve na mesma língua que os outros escritores brasileiros. Estes usam a linguagem técnica, formal, pensada e repensada... enfim, linguagem de livro. Rosa não. A sua é a da fala, a da alma e por isso mesmo seria impossível que carregasse a incompreensibilidade que lhe é erroneamente atribuída . Consigo perfeitamente imaginar um noite de lua, onde em volta de uma fogueira, sertanejos contam causos na linguagem de Guimarães. O escritor dos sertões é o equivalente aos impressionistas na arte visual. Estes estudaram os efeitos óticos da luz e do olho humano de forma a que pintaram espelhos da natureza sem precedentes, como nem Da Vici ou Michelangelo jamais sonhavam em conseguir; Já Guimarães Rosa estudou a língua de todas as formas possíveis e imagináveis, e conseguiu dar uma vivacidade tão absoluta a suas estórias que nem mesmo Shakespeare conseguira.
O cenário de Rosa, assim como sues personagens, não conhecem limites entre o mundo real e o do romance. Parecem trasbordar do livro. O sertão descrito parece frequentemente muito mais real do que a sala ou quarto em que o leitor lê o livro, e parece termos convivido pessoalmente com as personagens criadas, mais até do que com nossos amigos e parentes mais íntimos. Em nenhum momento se duvida que a estória contada - e de fato, elas parecem mais contadas do que escritas - seja verídica. Esse é o Gênio maior e inigualável de Guimarães Rosa!
Contudo, me abstenho de tentar explicar suas obras, coisa essa que, a meu ver, seria um tento pecaminosa, independentemente do autor. Além do que, há inúmeros textos de especialistas que primam por isso, mesmo creio eu, sendo bastante reprováveis e duvidosos. Contento-me, pois, em convencer o maior número de pessoas possível a ler Guimarães Rosa!
Tendo exposto isso começo a falar de Sagarana. Foi um dos primeiros livros do autor. Contém nove novelas que se amalgamam surpreendentemente, apesar de nenhum vínculo claro entre elas. Separar a obras seria um pecado que vejo-me incapaz de evitar. Não tenho habilidade - nem entendo plenamente a obra - para esclarecer sua unidade. Fico assim com uma novela de cada vez. Talvez seja artificial, mas separar as coisas é o único caminho que encontro para louvá-las em cada detalhe.
1)
O burrinho pedrês
"As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão..."
É essa a poesia presente durante toda a narrativa. Esse parágrafo é sem duvida o meu exemplo preferido pre prosa poética. Leia-o atentando para as virgulas e descobrirá o ritmo e a melodia de um perfeito poema. Guimarães nos brinda com musica escrita, sem no entanto retirar a vivacidade característica de seu estilo, é a reaproximação - se não superação - de Shakespeare, Dante ou até mesmo Goethe. Mas, como se vê abaixo, não há nada de inatingível na linguagem de Rosa, muito pelo contrário, parecemos estar de fato ouvindo dois homens conversando, com direito a interrupções, distrações, digressões e comentários.
"- Foi nada. Conta a história, Raymundão.
- Pois então, quando fui espiar o que a minha cachorra Zeferina estava estranhando ...
- Oh gués! Isso é nome de cachorro?
- Foi por vingança que eu pus, quando minha mulher Zeferina me largou... Mas, a' pois, não imagina o que eu vi! Dei mesmo numa baixada de pasto, e afundei quase no meio das vacas. Já disse que estava lindeza de claridade de noite..."
Bem resumidamente, a estória trata de um grupo de sertanejos que tocam uma boiada para ser vendida. Durante a viagem, os boiadeiros conversam entre si, contando causos vividos por eles ou por outros. Dentro do enredo há vários desses causos contados em linguagem sertaneja tão perfeita que nos dá a impressão de estar andando a cavalo do lado desses personagens. (Quem tem sítio no interior, fica a dica de decorar alguns desses causos para contar mais tarde em volta de uma fogueira, em uma vendinha, ou para a família mesmo.) Na novela, também se desenvolvem amizades e conflitos entre os vaqueiros. Cria-se até a expectativa de que haverá entre eles um assassinato durante a viagem. Como em muitas outras, nesta novela o desfecho está de acordo com a habilidade de Rosa em criar expectativas que não se confirmam, e a acaba de maneira totalmente inesperada. A força do destino é impressionante no conto, que literalmente arrasta os personagens para um desfecho que lhes foge o controle, apesar de todas as tentativas de controlar o futuro.
A novela é uma fábula genialmente concebida, e portanto trás a sua cota de "moral", no entanto, não há nada de doutrinador na obra de Guimarães. Recheado de ditados popular, sabedoria inata, simbolismos que se desvendam a cada releitura e a magia do sertão, a novela torna-se altamente recomendável para servir de pórtico àqueles que iniciam a leitura de Guimarães Rosa. Começar por ele é um ótimo jeito de esquecer tudo o que já disseram sobre o estilo de Rosa ser quase inatingível!
2)
A volta do marido prodigo
"A menos "pensada" das novelas do "Sagarana" a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945."
Guimarães Rosa em carta a João Condé
Apesar do titulo bíblico, talvez esta seja a novela com menos misticismo. Exatamente como o autor comenta, ela é a mais fluida do livro, a mais rápida de ler. Não me demorarei com repetições que a resenha se alonga, apenas relembro que a vivacidade atua aqui também. Nesta novela, no entanto, o gênio soube agir mais em outra parte: a trama.
Já li compararem essa novela ao romance picaresco de Manuel Antônio de Almeida, Memória de um Sargento de Milícias. Comparação detestável essa que põe um gênio ao lado da obra superficial de um autor não menos fraco. O malandro de Almeida é um idiota, ao passo que o de Rosa é brilhante. A maioria dos pícaros brasileiros são apenas engraçadinhos; dificilmente despertam estima. Talvez só os de algumas canções de Chico Buarque fujam deste padrão. Mas Guimarães não é a maioria. Sua novela, A volta do marido prodigo, apresenta uma estória de malandro tão inteligente, que apesar dos atos condenáveis do personagem, somos forçados a acolhê-lo com apreço. A esperteza da mentiras de Lalino, o malandro da obra, é comparável as do personagem shakespeariano Iago, de Otelo.
"- Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver."
Lalino vai levando a vida sem hora marcada e acaba saindo da cidadezinha interiorana para conhecer a capital, deixa inclusive esposa para trás. Depois, saudoso volta, sem nada e a trama é justamente como ele fará para reconquistar o espaço na cidadezinha que perdeu durante a ida a capital. Ao longo da da novela vai nos divertido com planos para o futuro e anedotas que nunca somos capaz de saber se são verdade ou mentira, salvo quando o narrador mesmo explicita isso. Essa habilidade de mentir (ou dizer a verdade. não ha como saber) também torna-o capaz escapa de situações impossíveis com suas estórias. Muitas vezes é Lelino que nos narra o que está acontecendo, e por ser sempre suspeito de mentir, nunca sabemos que rumo tomará a o enredo. Efetivamente, nessa novela o gênio de Guimarães soube agir bem. Só que agora mais na criação do personagem e da trama.
3)
Sarapalha
"Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto."
Guimarães Rosa em carta a João Condé
Está estória, de fato, não tem uma ação interessante. São dois primos, que pegos pela malária, conversam em uma varanda a respeito da vida e da morte. O que chama a atenção, no entanto é a dosagem de informação. Guimarães vai nos contanto de pouco em pouco de onde vieram e o que fizeram os personagens, de forma que a estória vai ficando assim bem interessante. Outro ponto de destaque é o cenário que parece ganhar vida, e denuncia a decadência do local da novela pela passagem da malária. O tom trágico dessa novela dá um forte contraste entre ela o A volta do marido prodigo, o que talvez nos dê algumas dicas sobre a unidade de Sagarana.
"Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.
- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p'r'a gente deitar no chão e se
acabar! ...
É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão."
A beleza está no cenário que se torna o mais ativo dos personagens da novela. Não só os homens parecem ter sofrido com a malária, também a terra se treme de doença. Essa poética toda que recheia Sarapalha.
4)
O duelo
"Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a anterior: a história foi meditada e "vivida", durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945"
Guimarães Rosa em carta a João Condé
Talvez este seja o conto mais gostoso de ler. Aqui, novamente parecemos estar ouvindo a estória se contada e não escrita. Só que desta vez para um público mais erudito. A linguagem bem trabalhada, no entanto, não tira a vivacidade da novela. O tema tem caráter épico e ao mesmo tempo humorístico, há traição, perseguição, mortes... tudo contado de modo leve e engraçado.
"Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador: baleou o outro bem na nuca. E correu em casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão."
Nessa novela, de novo a genialidade está na trama. Há uma série de eventos lineares que convergem inteligentemente para o fim penado de Guimarães, sem no entanto, termos a mínima ideia de como acabará a novela. Novamente se cria-se diversas expectativas de um fim que acabam por não se concretizar.
5)
Minha gente
"- Veja este que vai aqui à nossa frente: é um camarada analfabeto, mas, no seu campo e para o seu gasto, pensa esperto. Experimente-o."
Uma das minhas novelas preferidas. A identidade do narrador personagem é desconhecida, no entanto sou fortemente induzido a pensar que trata-se do próprio João Guimarães. Ficamos sabendo que ele é doutor apenas porque um companheiro assim o chama (e Guimarães Rosa foi médico). Também descobrimos que o "doutro" bastante entende de outros países ( e Guimarães foi diplomata). Não afirmo que essa estória aconteceu de fato com o autor. Mas tanto se aproxima o personagem do escritor e tão convincente e a narração que não duvido que Rosa tenha vivido intensamente, pelo menos em sua cabeça, esta estória.
Como mostra o trecho apresentado, a novela fala da sabedoria da gente típica do sertão mineiro. O narrador admira essa gente como verdadeiros filósofos e comenta: "Minha gente é boa" ou "Pororoca! Será que, ninguém aqui pensa como eu?! ...". Também estão apresentados os costumes locais: a ausência da lei institucional, a valorização da coragem e destreza, as fofocas, traições, intrigas e, o mais marcante, as características da mulher sertaneja.
"- Seu doutor, a gente não deve de ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo..."
De fato, a novela é romântica, conta as desilusões amorosas do narrador que tenta conquistar sua prima se êxito. Há uma dramatização bastante forte da situação, mas tudo a maneira de Rosa, que difere de qualquer estória romântica já escrita. Vale a pena ler só para conhecer essa nova abordagem do tema amor.
6)
São Marcos
"Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro. "
Guimarães Rosa em carta a João Condé
A mais densa do livro, creio que a que eu menos goste. Há descrições de cenários riquíssimos mas chegam a ser cansativas e sufocantes. No mais, a novela é bem divertida porque fala da superstição do sertão. É contada à maneira dos causos, e como estes, tem o objetivo de impressionar o ouvinte ou leitor. Há contos de bruxaria, feitiços, reza brava e bruxos, o que torna tudo bem interessante.
7) Corpo Fechado
"Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu
'Humanamente' comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência."
Guimarães Rosa em carta a João Condé
Talvez a estória mais viva do livro. Conta dos valentões do arraial, da lei do forte que impera por lá. Na prosa dos personagens, ficamos conhecendo a sucessão de valentões que mandaram no local e em meio a essas prosas, Manuel também conta como foi viver com ciganos e como os enganou. Tudo na novela é perfeito. Desde a trama e o suspense, passando pela linguagem até a caracterização dos personagens e descrição do cenário. É uma estória que se vive. Vibramos quando Manuel conta como enganou o cigano e damos rizada de seus comentário sobre casar. Depois de ler, me sinto amigo de Manuel do mesmo modo que tenho amizade com as pessoas com que efetivamente convivo.
"- É o jeito. Eu só queria treis coisas só: ter uma sela mexicana, p'ra arrear a Beija-Fulô ... E ser boticário ou
chefe de trem-de-ferro, fardado de boné! Mas isso mesmo é que ainda é mais impossível... A pois, estando vendo que não arranjo nem trem-de-ferro, nem farmácia, nem a sela, me caso... Me caso! seu doutor..."
Mas a estória começa efetivamente quando a atual valentão do arraial, Targino, avisa Manuel que gostou da sua esposa e ira ter com ela antes deles se casarem. Manuel fica então entre perder a honra e a vida. Como sempre, o final é surpreendente! Impossível não adorar essa novela!
8)
Conversa de Boi
"- O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o unico vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente."
Do livro, é a estória mais próxima de uma fábula. Um carro de bois levando um defunto vai pela estrada. Os bois conversam sobre a sabedoria enquanto no carro de boi, o menino-guia lamenta a morte de seu pai, que vai lá atrás em defunto. É a estória mais moralista de todas. Guimarães contrasteia o conhecimento intelectual com a sabedoria da experiência. Aqui também ocorrem causos entro de uma estória maior, só que desta vez contados pelos bois.
9)
A hora e vez de Augusto Matraga
"- Tem horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma vantagem... Mas eu tenho medo... Já sei aqui mesmo, no sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar! ... A minha vez ... "
A chave de ouro do livro! A hora e vez de Augusto Matraga é a novela mais conhecida e apreciada de Sagarana. Ela combina todas as qualidades dos outros e nenhum defeito! Narrada em estilo épico, conta como Augusto perdeu tudo o que tinha e passa a viver como asceta, sempre tentado a buscar sua nova vida de valentão. Na sua epopeia ele encontra amigos que lhe acolhem, inimigos e um grupo de cangaceiros. A tensão e o desejo de saber o que vem em seguida é impressionante! Guimarães fecha o livro mostrando todo o poder de seu gênio! São por novelas como esta que eu fico aliviado por ter Guimarães Rosa representando nossa literatura brasileira, único, original, sem igual e só nosso. Por isso, em hipótese alguma, deixe que lhe passe a vida sem jamais ter lido pelo menos um conto desse grande autor, que isso é coisa que configura pecado grande.