Joao.Victor 09/02/2018
Dramaturgo, jornalista e escritor, Nelson Falcão Rodrigues nasceu a 23 de agosto de 1912 em Recife no estado do Pernambuco. Seu pai, o jornalista Mário Rodrigues, resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro pouco tempo depois do seu nascimento. Em 1935, Nelson contraiu uma tuberculose e foi internado num sanatório de Campos do Jordão. Recuperou-se e voltou para o Rio de Janeiro. Ele traduz as mazelas do homem com poesia e densidade. Bastante influenciada pelo estilo do dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936), a dramaturgia de Nelson se alimenta da tragédia do homem comum, leitor da imprensa marrom, fã de artistas de novela e jogadores de futebol. Em 1963 ele se separa de Elza Bretanha, com quem esteve casado desde 1940, e com quem teve dois filhos. Viveu um relacionamento com Lúcia Cruz Lima que lhe deu a filha Daniela, e depois com Helena Maria. Em 21 de dezembro de 1980, na cidade maravilhosa, falece Nelson Falcão Rodrigues.
Existe alguma coisa que diferencia os meros escritores dos gênios da escrita. Poder transpassar para seus personagens tudo aquilo que é sentido no mais íntimo do seu ser não é tarefa para qualquer um. E as obras dele parecem que foram cozidas num caldeirão com ódio, crise familiar, imoralidade, obsessão, possessão, desejo e uma grande dose de conflito interno. Some-se a isso uma boa leva de personagens altamente originais e cotidianos e estará pronta uma obra digna de Nelson Rodrigues. É surpreendente como as obras dele conseguem fazer com que nós, leitores/espectadores, nos identifiquemos com elas. O sentimento de identificação é instantâneo ao nos deparamos com a desconfiança de Olegário em relação à sua esposa Lídia na peça A mulher sem pecado, peça escrita em 1941, ou então quando torcemos para que no fim Oswaldinho consiga fisgar a bela e religiosa Joice no Anti-Nelson Rodrigues, peça escrita em 1973, mais ainda: qual o leitor/espectador que não sentiu o mesmo desespero que a menina Sônia em Valsa nº 6, peça escrita em 1951? Eis aqui o algo a mais: sentimento a mais, é isto que possuem as obras de Nelson Falcão Rodrigues.
Constituídas de um realismo em estado bruto, suas obras causam em nós toda essa identificação e ao mesmo tempo uma enorme repulsa. Afinal, somos infiéis, desconfiados, egoístas, somos seres que por vezes nos deixamos levar pelos instintos da carne e loucuras da mente, mas não admitimos isso. Não admitimos porque temos um padrão de comportamento a zelar perante nossa sociedade. Com muito êxito, ele trouxe isto à tona em suas peças, sempre mostrando o homem como medíocre. Caso queiramos destacar os pontos principais da obra de Nelson Rodrigues basta que nos atenhamos a sua peça que foi tida como um divisor de águas, em sua própria vida e também no cenário nacional do teatro: Vestido de Noiva. Nela encontramos alguns dos aspectos principais da obra desse grande (se não o maior) dramaturgo brasileiro: infidelidade – uma irmã que rouba o namorado da outra; desejo reprimido - Alaíde lê o diário de Madame Clessi e aí encontra refúgio para todos seus desejos, que não foram satisfeitos por seu noivo Pedro; ódio – é inegável todo ódio que resulta da infidelidade de uma irmã para com a outra; crise familiar – o ambiente onde muitas de suas obras acontecem é curiosamente o ambiente familiar, como exemplo podemos citar a fala do personagem Edmundo à sua mãe, em Álbum de Família peça escrita em 1944: “Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se nossa família fosse a única e primeira. Então o amor e o ódio teriam de nascer dentro de nós” ; conflito interno – os personagens principais da obra de Nelson sempre trazem um inferno – tenha-se inferno como uma grande confusão – dentro da cabeça, tal como disse Olegário em A mulher sem pecado: “Eu tenho um inferno dentro de mim. Um inferno particular” .
Vestido de Noiva foi escrita em apenas uma semana. Em sete dias cabem mais de mil de paixão e dor. Em síntese, toda a trama gira em torno de Alaíde (noiva), Madame Clessi (cocote/conselheira de Alaíde), Pedro (marido de Alaíde) e Lúcia (irmã de Alaíde). Duas irmãs que amam o mesmo homem: esta é a principal unidade dramática. Alaíde rouba o namorado de Lúcia e vai casar com ele, mas Lúcia consegue chegar a tempo e interromper o casório. Alaíde sai da igreja desesperada e é atropelada. Morre. Lúcia, dizendo estar sendo assombrada pelo espírito de Alaíde, vai passar algum tempo em uma dita fazenda. Volta. Veste o vestido de noiva e anseia pela cerimonia, que não fica explicito se ela casa ou não com Pedro. No entanto, toda essa gama de informação só nos é dada no terceiro ato. Os dois primeiros são, em sua maioria, produtos da psique de Alaíde, intercalados com passagens do “mundo real”, digamos assim. O final da peça é o mais marcante: “[...] Apaga-se, então, toda a cena, só ficando iluminado, sob uma luz lunar, o túmulo de Alaíde, Crescendo da Marcha Fúnebre. Trevas” . A tragédia é iniciada com escuridão e solidão, assim também é seu final: escuro e solitário.
É merecida que seja destacada a mágica realizada por Nelson Rodrigues em dividir o mesmo palco em três planos diferentes, onde cada um deles representa um estado da consciência de Alaíde. Os devaneios extremamente realistas vividos por Alaíde no plano da alucinação somados à frieza dos médicos que tentam minimizar os danos sofridos no acidente de carro, no da realidade e aos fundamentais lapsos de memória dela que nos ajudam a organizar todo esse caos informático e chegar a uma conclusão sobre a trama, no da memória, tudo isso eleva ainda mais o grau de complexidade e de secura da peça. Complexidade, pois, como leitores/espectadores, temos que ir prestando atenção em cada passo dado, rememorado e vivido, além de fazer inferências, para enfim compreender todo o enredo. Secura, pois – até mesmo os adjetivos e locuções adjetivas corroboram com isso – bonita, bem-vestida, louca, gorda, velha, cheia de varizes, etc. – a cada ato nos é revelada a face que tentamos esconder, uma de seres invejosos, falhos, carnais, seres repletos de um falso pudor, humanos medíocres.
É interessante notarmos como é composta a peça, isto é, como ela se nos apresenta. É uma obra que é completa em si: Vestido de Noiva basta-se. É comum encontrarmos em diversas peças teatrais enredos que são iniciados e não se sabe o antes da história. Não nos é dito o que se passou com os personagens antes do início da história. A peça citada é iniciada com sons de um acidente automobilístico e com Alaíde procurando por Madame Clessi. Apesar da naturalidade de como os fatos se apresentam, não nos fica claro, a princípio, o motivo daquela procurar por esta e nem o porquê e quais as consequências dele. No entanto, no decorrer da trama sabemos que o acidente ocorre devido à interrupção de Lúcia no casamento de Alaíde com Pedro, onde esta ao ter esclarecido que realmente roubou o namorado da irmã sai da igreja e é atropelada. Alaíde procura, em seu inconsciente, por Madame Clessi, pois ela representa a figura da mulher livre, mulher corajosa, mulher que vive seus desejos.
No decorrer da peça fica confuso se Alaíde realmente se casou com Pedro. Em dados momentos ela o chama de noivo, em outros de marido e a confusão em sua mente é tal que ela chega a não saber qual seu grau de relacionamento com ele, mas no terceiro ato temos a confirmação: Alaíde realmente foi casada com Pedro. Como prova basta que nos atentemos ao sobrenome compartilhado por eles: Moreira. Pedro se apresenta como Pedro Moreira ao buscar notícias de Alaíde no hospital. O nome de Alaíde é dado como Alaíde Moreira pelos informantes do jornal Diário. É tradição aqui no Brasil e em outros recantos do mundo que a esposa herde o nome do marido após o matrimônio, eis aí a prova.
O estado mental de Alaíde é tão perturbado que a trama fica saltando descontroladamente por cenas vividas, relembradas e, em sua maioria, imaginadas. A mente de Alaíde é sua maior perdição. Resultado de toda essa confusão temos algumas questões que ficam abertas a interpretações, por exemplo: Lúcia realmente casou com Pedro? Qual o significado da mulher inatual que vela o suposto corpo de Madame Clessi? Enfim, são questões para as quais, como leitores/espectadores, podemos apenas supor respostas. Talvez esteja aí uma forte marca da vida cotidiana dos personagens: deixar questões em aberto, questões que nunca voltamos a enfrentar.
Outro fato a ser citado é como são apresentadas as falas no plano da realidade. São rápidas, concisas, mecânicas. Vemos nelas uma certa crítica à nossa sociedade. Sociedade onde os relacionamentos estão cada vez mais artificiais e insossos. Relacionamentos que acabam gerando condições para que mais Alaídes leiam mais diários de madames Clessis. O que notamos na peça resenhada é uma personagem muito intensa que morre sufocada pelas moralidades da sociedade. E por conta dessa opressão busca refúgio em uma mulher livre. O próprio devaneio de Alaíde onde ela acredita ter matado Pedro pode ser tido como uma forma que ela encontra para se ver livre dessa sociedade moralizante. A figura de Pedro, o homem que prefere ler à dar atenção aos desejos de sua esposa, pode ser tida como uma metáfora da própria moral. Nesta peça Nelson Rodrigues adota uma postura muito pessimista em relação à sociedade. A figura do chofer que atropela Alaíde e não presta socorro também é bastante sugestiva. Podemos tê-lo como um homem absorto em seu mundo individual. Homem insensível produto de uma sociedade dissipada.
Toda a trama é passada em dois lugares do “mundo real”: um hospital e a casa de Alaíde. O hospital é o lugar onde Alaíde foi atendida após o acidente e acaba indo a óbito. A casa dela é o lugar onde acontece o ritual fúnebre – popularmente chamado de sentinela –, tanto que ela, em todo seu estado alucinógeno, chega a sentir o cheiro de flores, muitas flores, as que seriam do próprio funeral. E sua vontade de ser madame Clessi é tal que sua memória é constantemente confundida com a realidade. A casa onde Alaíde leu que o esquife de madame Clessi estava era repleta de flores, ou seja, existem passagens na peça nas quais Alaíde atribui aspectos de sua vida à de madame Clessi e vice-versa.
Enfim, para aqueles que procuram por uma obra crítica, realista e muito psicológica eis aqui a resposta: Vestido de Noiva. No entanto, cuidado! É alto o risco de uma possível dependência. As obras de Nelson Falcão Rodrigues possuem aquele algo a mais citado acima e, consequentemente, causam a procura de um ir além. Não é suficiente lermos apenas uma obra dele, somos envolvidos por todo seu pessimismo e mergulhamos cada vez mais no íntimo de suas obras, que é o dele mesmo. E transpassando o universo do deleite literário, a peça resenhada serve como material de pesquisa para estudiosos das letras, do teatro, da mente humana e de diversas outras áreas do conhecimento.