Helder 27/05/2023Um Kundera para não esquecerEste é o segundo livro que leio do autor e posso dizer que foi um desafio interessante.
Diferente do que eu pensava, este livro tem uma narrativa diferente de um romance, o que a princípio me trouxe uma certa estranheza, pois aqui temos sete contos com poucas conexões entre eles e que discutem diversos temas, mas sempre passando levemente pelo riso, mas principalmente pelo Esquecimento que é algo muito forte que assolou a República Tcheca após a invasão russa em 1968.
Este é o primeiro livro que Kundera escreveu no exilio, quando foi expulso de seu país como diversos outros intelectuais que pensavam diferente dos comunistas russos. Kundera escreveu este livro em 1978 e já morando em Paris, o que talvez até explique a liberalidade de alguns textos que talvez na França fossem mais aceitáveis já naquele momento, mas que no mundo do leste europeu de onde ele vinha, com certeza devem ter causado diversas polêmicas.
Acho que posso dizer que todos os textos deste livro falam sobre política e/ou erotismo, e tudo de maneira filosófica fazendo a gente parar e pensar em tudo o que o autor vai trazendo em seus textos.
Porém, diferente de sua obra prima A Insustentável Leveza do Ser onde as discussões filosóficas estavam inseridas na história e a movimentavam, aqui elas aparecem de uma maneira mais truncada, o que torna este livro mais desafiador do que seu grande sucesso.
Mas isso não é demérito. O que me causou estranheza é que muitas vezes eu tinha a impressão de que ele estava falando sobre um assunto, mas ai de repente ele passava a divagar sobre outro assunto, e este era tão interessante que me dava vontade de parar para marcar partes e partes do texto, e ai de repente eu já não lembrava sobre o que o texto vinha falando no seu início.
E agora, fazendo esta resenha aqui eu já não me lembro de muitas informações que talvez tenham sido essenciais para algumas pessoas, mas mesmo assim terminei este livro carregando incríveis momentos na minha cabeça que acho que levarei para a vida.
Momentos como a história de Mirek, que se apaixonou por uma mulher feia com quem deixou cartas no passado que hoje podem o condenar no novo regime, onde tudo aquilo que é contra o governo é apagado, e ele não quer que seu passado seja apagado, mesmo que ele seja preso por isso. Ou a história das Cartas de Tamina, que fugiu da República Tcheca com o marido que acabou morrendo em seu novo país. E Tamina está esquecendo este amor e deseja reencontrar diários que escreveu durante anos e que talvez falem mais de amor do que de política, mas ficaram em Praga, local onde ela não pode voltar. A necessidade dela em ter estes diários de volta e as maneiras que acredita poder recuperá-los chegaram até a me trazer uma sensação de claustrofobia. Que vontade de me oferecer para ir até ali buscá-los. E temos ainda o maravilhoso capítulo do jovem estudante que se apaixona pela mulher mais velha que tinha um marido bronco e um amante bruto e que se apaixona pela inteligência do jovem, que frequenta uma reunião de escritores alemães que me fizeram sentir um leitor sem cultura, ou sentir o litost, que você precisa ler o livro para descobrir do que se trata. E por fim temos um capitulo sensacional onde o erotismo está exacerbado, mas que discute diversos assuntos interessantes que devem ter sido muito polêmicos na data de lançamento deste livro, pois o texto tem muitos trechos que parecem extremamente machistas, mas que no final percebemos que na real quem controla todas as relações são as mulheres, que neste conto de Kundera são extremamente libertárias e bem resolvidas. Para se bater palma, mas que em tempos de “sabidos do twitter” podem ser lidos de maneira enviesadas e gerar um cancelamento para o bom velhinho Milan Kundera e sua vida tranquila em Paris aos 94 anos.
Ah, mas você pode estar se perguntando onde esta o riso? Te confesso que me parece que o riso foi abolido daquele local com a chegada do comunistas, mas mesmo assim ainda temos um trecho delicioso de Kundera, ou seu personagem, trabalhando como astrólogo para um jornal controlado por comunistas e numa parte onde ele nos conta que o riso foi inventado pelo diabo e que depois os anjos tentaram copiá-lo.
Resumindo, é um livraço. Desafie-se. Pegue um marca-texto. Leia devagar. E não desista. Te garanto que vai valer a pena, e que ao chegar ao fim você terá a sensação de que está mais inteligente e que sua visão de mundo aumentou.