Rubens 29/11/2011
Era uma vez uma onça pintada, escrita e filmada
Era uma vez um Brasil. Nele a população rural era bem maior que a urbana, patentes militares da Guarda Nacional compradas, matar onça-pintada sinal de coragem, mostrar as canelas uma sem-vergonhice, o catolicismo cânone e o correio se fazia por cartas e telegramas. O contraste com o contemporâneo beira o inacreditável; hoje a população urbana é superior a 80% do total, as Forças Armadas completamente profissionalizadas, a onça-pintada ameaçada de extinção e caçá-la covardia ecológica além de crime, sem-vergonhice virou apenas exemplo de hífen na língua portuguesa, o catolicismo não é a religião que mais cresce no país e todos escrevem e-mails ou mails...
Ambientado no regional, naquele mundo provinciano e interiorano, José Cândido de Carvalho plantou a sua literatura contista de "Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon", uma seleção da coluna "O Impossível acontece" da finada revista O Cruzeiro. Uma delícia de leitura.
A sua genialidade inventiva e deformadora das palavras, por exemplo [palmatória] confessativa, pormenorizagem, falatinado, capacitismo, brincancista, etc e sobretudo das expressões idiomáticas só encontra rival na poesia, porém nele a alteração é sempre cômica e representa o esforço do interiorano no falar difícil de quem quando não sabe inventa. Inexiste o palavrão no texto, pois afinal nesse mundo o obsceno é pecado. Mas por trás do conservadorismo de fachada, os desejos estão lá; o adultério distribuído equitativamente, a vigarice sob mil formas, o alcoolismo cachaceiro em uma época que desconhecia as drogas, a atração pela beleza da juventude, a corrupção pública e o poder de uma elite agrária. Diante disso José Cândido de Carvalho escreve contos anedóticos e fantásticos. Alguns temas são recorrentes, mas sempre há uma expressão hilária, no mínimo curiosa e pequenas variações que compensam a perda de originalidade - problema comum aos textos inicialmente publicados em colunas de jornais, mesmo em autores do quilate do próprio JCC e Nelson Rodrigues. São centenas e até milhares de textos e é inevitável o esgotamento do autor e a repetição involuntária. Para o leitor aparece a sensação de déjà-vu.
Verter a obra de JCC para outros idiomas deve ser uma proeza em virtude da brasilidade e particularidades da escrita, entretanto não é esse o motivo para que uma busca nas páginas das livrarias amazon.com e da Barnes & Noble pelo autor de "O Coronel e o Lobisomem", que já emplacou mais de cinquenta edições em português, não retornarem um único livro traduzido dele - minto, encontrei uma edição com três exemplares à venda nos sebos coligados à amazon.com francesa, outra com um número maior na amazon.com alemã e nada em inglês (exceto em coletâneas de autores brasileiros). A realidade é o desprestígio da nossa cultura no exterior.
Por aqui o romance obra-prima "O Coronel e o Lobisomem" possui adaptações para o cinema, a televisão e o teatro, indicadores da sua força criativa, entretanto aparentemente nenhum conto foi aproveitado de "Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon", editado pela José Olympio Editora.
José Cândido de Carvalho foi membro da Academia Brasileira de Letras.