HigorM 01/09/2018
'Lendo Nobel': sobre o passado que condena
Há tempos esgotado no Brasil, ‘Um artista do mundo flutuante’ ganhou casa editorial, capa e tradução novas por conta da nomeação de Kazuo Ishiguro ao Nobel de Literatura. Antes desprezado na Editora Rocco, o título fora resgatado pela Companhia das Letras, casa que sempre atendera os pedidos do autor, desde que começara a publicá-lo, no final da década de 80.
Por conta do tratamento indiferente ao livro, mais parecia se tratar de uma história esquecível, que não iria agregar mais nada a quem quisesse conhecer a bibliografia inteira de Ishiguro. Ledo engano. O livro é grandioso.
Embora aborde um assunto batido, mesmo em 1986, época em que foi originalmente lançado, que é o da Segunda Guerra Mundial e suas conseqüências, 'Um artista do mundo flutuante' é contado por um prisma diferente, e até então não explorado: o de pessoas que não foram para a Guerra, mas que enviaram seus filhos e netos, e eles não voltaram.
Concentrando-se em Masuji Ono, pintor renomado, a história nos conduz à bela e tradicional cultura familiar japonesa, onde o protagonista vive na incompreensão com a solteirice de sua filha, Noriko, uma jovem bonita, inteligente e até interessante, que logo desperta a atenção dos rapazes, mas que fazem com que eles, em algum momento qualquer das negociações, desistam dela.
Angustiado com o que pode estar acontecendo, Ono parte em busca de amigos e pessoas respeitáveis da época de sua juventude, para que eles se tornem fontes de confiança, caso alguém queira investigar o passado da família, o que por si só é uma besteira, segundo o velho Ono, já que o seu passado não envergonha. Ou será que envergonha?
Assunto parcialmente repetido em 'Os vestígios do dia', de 1989, ‘Um artista do mundo flutuante’ leva o leitor a refletir sobre a maneira como usamos nosso tempo, e em que nos dedicamos ao longo da vida. Além disso, temas como culpa e memórias permeiam ambos os livros, com uma sutileza que consegue ser pontuda o suficiente para machucar.
No entanto, ao contrário do que pode parecer, um livro não é uma extensão ou um rascunho do outro. Em ‘Vestígios do dia’ vemos um Kazuo amadurecido (não que ele não seja no anterior), e mais britânico que japonês, propriamente dizendo. Parece uma incrível história oriental que teve sua versão ocidental, com todas as adaptações culturais necessárias, que acabou fazendo mais sucesso.
A diferença está no posicionamento de Musaji e Lord Darlington com relação à Guerra, além do próprio ano de ambientação da história, mas o grosso está em ambos os ótimos personagens, e a maneira como eles refletem sobre o passado, suas escolhas e consequencias deixam o leitor reflexivo.
Belo, como a escrita de Ishiguro em todos os seus livros, ‘Um artista do mundo flutuante’ é preciso e agonizante. Assim como seu magnum opus, ‘Os vestígios do dia’, nos faz refletir quem e como somos na sociedade, e como nossas escolhas reagem não somente na nossa vida, mas na de quem, mesmo que indiretamente, participa dela.
Este livro faz parte do projeto ‘Lendo Nobel’. Mais em:
site: leiturasedesafios.blogspot.com