spoiler visualizarPeterson.Silva 06/10/2021
Por que esses finais? Comparação inevitável com Helena, de Machado de Assis
É curioso ler esse livro quase que na sequência do Helena, de Machado de Assis. É impossível pra mim não compará-los - e sendo que já deve haver muitas resenhas desse livro no Skoob, vou aproveitar pra oferecer algo diferente ao compará-los.
*** SPOILERS PARA OS DOIS LIVROS ***
*** AVISO DE CONTEÚDO: SUICÍDIO ***
Helena foi publicado em [18]76, e O Primo Basílio, em 74, mas aparentemente chegou ao Brasil em 78. Então ninguém se inspirou em ninguém.
As duas histórias têm enredos diferentes, e embora não se possa dizer que sejam simétricos, eles têm um fio importante em comum: descobre-se as mentiras de uma mulher da elite - ou pelo menos, vá lá, "classe média alta", em cada contexto - e ela então fica doente e morre sem causa óbvia.
De onde vem esse "tropo" miserável, em que a protagonista "morre de tristeza"? Que coisa mais idiota. Quem estuda antropologia até poderia suspender a descrença - sabe-se que a "morte por enfeitiçamento" é real, vide Mauss - mas não é nem esse o caso aqui. Pode ser ignorância minha, mas o que é que estava acontecendo no mundo literário no final do século XIX, que as histórias convergem pra isso com tanta facilidade? Ainda bem que essa besteira morreu - seu literal último suspiro, talvez, tenha sido nas prequels de Star Wars, com a Padme morrendo porque "perdeu a vontade de viver"... Puta merda, viu. Com sorte, tira-se tanto de sarro disso na internet que escritores e roteiristas passarão a evitar esse tipo de "resolução" daqui pra frente.
Porque veja, não é só porque é uma coisa idiota ou pouco realista. É porque é narrativamente insatisfatório.
Em termos de satisfação, aliás, Helena é o avesso d'O Primo Basílio. A história do primeiro é fria, o mistério é fraco, não instiga muito. Só quando a "reviravolta" acontece você fica "aaahhh - que interessante!". Já no segundo caso, embora o começo seja meio lento e o realismo descritivo do autor é cansativo pra [*****], eu me surpreendi com a forma como o enredo me envolveu. Você vai se "investindo" na história, fica genuinamente curioso pra saber o que vai acontecer. Na verdade, ao contrário de Helena, não há mistério - só os acontecimentos futuros, e isso já basta. Há até momentos de genuína emoção; vêm à cabeça a desilusão de Luísa com o "Paraíso" (tadinha!), os rompantes da Juliana, o bofetão que a Joana lhe dá na cara e as chicotadas no Castro - ah, sem falar da hipocrisia dos tempos, registrada magistralmente por Queirós na descoberta de que Jorge também traíra a esposa. Eu achava até que esse seria o "turning point" da obra e, no entanto, nada acontece, vida que segue, isso nunca mais impacta em nada (mas tudo bem, essa é precisamente a questão). Considerando as duas histórias (sem incluir seus finais), eu adoraria ter o estilo de escrita superior de Machado com o enredo mais envolvente do Queirós.
O final, contudo, é péssimo nos dois casos. A diferença é: em Helena, a protagonista morre _depois_ de uma confrontação, e depois inclusive da reviravolta explicada pelo pai, etc. Há na verdade uma série de interações chave para o desenvolvimento derradeiro dos personagens, fechando arcos, _antes_ da "doença" que acomete Helena. Além disso, Helena não é considerado um grande clássico do Machado de Assis. Pelo contrário, é uma obra do tipo "olha só o que ele escrevia antes de ser foda...". Já "O Primo Basílio", que era pra ser uma grande obra, é toda construída em cima do suspense de "o que é que vai acontecer quando o Jorge descobrir...". Até mesmo a morte da Juliana é aceitável (em termos narrativos), porque provoca aquela soberba antes da queda: Luísa começaria a achar que está tudo bem. Poderia ter até uns tons trágicos, de húbris: com a guarda baixa, deixaria escapar algum detalhe que levaria Jorge à verdade.
Mas não há confrontação de verdade. E não digo nem "treta", violência, sangue - não há conversa, não há embate, não há resolução. É como uma montanha russa que, depois daquela subida inicial em marcha lentíssima, não faz uma descida aguda, mas sim um deslize quase plano, sem velocidade, sem looping, sem nada, que termina em 30 segundos num freio suave. É uma frustração narrativa enorme. Horrível, horrível, horrível.
Mas será que não estou tratando esse livro como se fosse uma série da Netflix? Um produto da indústria cultural, que deve agradar e satisfazer? Afinal, assim como no caso da indiferença às traições de Jorge, a morte sem resolução pode ser precisamente o sentido da história: o casamento burguês aparece como instituição tão totalitária e sem saída que não resiste ao menor abalo. No fim, estão todas as vidas afetadas e destruídas (as das mulheres, por óbvio, infinitamente mais que as dos homens) por uma trama de mentiras destinada a suportar as aparências. O final final de fato - com o visconde e o Basílio comentando a Luísa-objeto-de-prazer - reforça essa impressão. Queirós estava a criticar; não a edificar ou mostrar saídas.
Tem como manter essa mensagem sem um final tão chato e anticlimático?
No caso de Helena, por exemplo, fiquei pensando que sua culpa poderia ser canalizada em termos de abandonar a nova família em busca de seu pai perdido. Mas isso é obviamente anacrônico: sem qualquer rede de suporte - como sua própria mãe tinha, no mínimo, com seu pai biológico, e que depois precisou ter com o adotivo - ela não iria longe. No fundo, a tragédia é que ela foi vítima do próprio sucesso burguês, em vários sentidos, e a mensagem me parece ser essa mesmo (os detalhes já meio que me escapam, pra ser sincero, talvez isso não seja muito preciso). Mas que pelo menos fosse um suicídio então - um do qual o irmão dela não tenha consigo salvá-la - em vez de "morreu de tristeza".
No caso deste livro, por outro lado, o que eu faria para manter a tragédia era o seguinte: em primeiro lugar, Jorge e Luísa poderiam ter pelo menos se confrontado sobre os acontecimentos (após a morte de Juliana). Havia N formas de fazer com que Jorge descobrisse a traição, muitas inclusive interessantes no sentido de antecipar ainda mais o momento - como, por exemplo, escrever às pessoas que Luísa disse que foi ver enquanto ele estava fora, e eles responderem que nunca foram à Lisboa. A própria carta de Basílio podia ser ainda a gota d'água, que seja. Mas que brigassem, que chorassem, que discutissem, que admitissem as coisas: em camadas, em múltiplas ocasiões, com admissões cada vez maiores, fazendo com que Jorge ficasse cada vez mais tentado à inclemência, cada vez mais dividido sobre o que fazer, com rumores nas ruas, etc.
Se _com isso_ Luísa ficasse cada vez mais doente, ou mesmo tentasse um suicídio, e isso colocasse uma contradição ainda maior para o marido - que, no começo, defendia matar esposas infiéis, e com ela doente acabaria também por perdoá-la e querê-la de volta, em vão - acho que seria muito mais contundente (mais... Catártico, talvez? Eça evitou de propósito a catarse?), mantendo o espírito da "mensagem" como a interpreto. Que se adicionasse mais 50 ou 100 páginas para explorar isso; outras 50 ou 100 poderiam facilmente ser tiradas do começo e do meio. Do mesmo modo se chegaria à infelicidade inevitável da hipócrita cena lisboeta.
Já talvez ousando por em risco a mensagem e mesmo o estilo da história, faria ainda outra coisa: se Luísa caísse doente e se recusasse a conversar sobre o assunto, mesmo tendo Jorge descoberto algo da traição, poder-se-ia eliminar a confirmação de que Basílio era o culpado, forçando Jorge a especular e a concluir que Sebastião era o traidor. Louco de ciúmes e em especial pela recusa de Luísa a esclarecer as coisas, Jorge então o mataria. Como as coisas se degringolariam daí em diante pouco importa.
Fico pensando na crítica que Assis fez d'O Primo Basílio: não conseguimos nos conectar à protagonista porque lhe falta fibra moral. Acho que é por isso que essa questão do Sebastião me agradaria (de novo, narrativamente): embora Luísa seja vítima das circunstâncias, ela não o é mais que Eugênia, por exemplo; além disso, a alternativa está logo ali, ao lado, o tempo todo: uma vida como a de Leopoldina - que ela, mais pro final, inclusive entende, embora não consiga entender enquanto alternativa viável. Mas daí, o quê? Que esse vazio todo a leve a morte por tristeza é menos interessante que mostrar que a falta da menor resolução em tentar resolver as coisas (por falta justamente de uma pulsão própria, de princípios) respinga nos outros, também, inclusive quem a tenta "ajudar" (ajuda que consiste, afinal, em mentir para sustentar o status quo).
Ficaria um contraste curioso com Helena, em que a protagonista morre _precisamente porque_ tem um senso de orgulho moral inflexível demais, por certo que afetado por expectativas de classe e gênero mas certamente compreensível em contexto. Queirós nos deu uma obra em que a "falta de fibra moral" leva à própria pessoa à morte e "a vida é assim mesmo"; não um comentário normativo, necessariamente. Pelo contrário, até bastante ácido - mas, infelizmente, meio sem sal.