joaoggur 27/09/2024
Como beber dessa bebida amarga?
Raduan Nassar é um dos maiores escritores deste país, - e o dito cujo só tem três livros publicados. É isso mesmo. O vencedor do Prêmio Camões de 2016, logo após se tornar um fenômeno devido a seu romance de estreia (Lavoura Arcaica, de 1975), abandonou a literatura. A novela que aqui resenho, Um Copo de Cólera, por mais que tenha sido lançada em 1978, fora escrita muitos anos antes, - tal como Menina a Caminho, uma reunião de contos que, lançada em 1997, estava engavetada desde a década de 60.
O preâmbulo dá-se pelo meu desejo de estabelecer que quantidade não é sinônimo de qualidade; para falar a verdade, eu chego a me entristecer que temos tantas poucas amostras de sua habilidade literária. As palavras são reféns de Raduan; das construções léxicas, do vocabulário, tudo tem uma extrema profundidade semântica, simbólica, num intenso fluxo de consciência.
O casal em questão, protagonista da história, é só um pretexto para podermos adentrar no âmago das relações humanas, mergulhar nas complexidades de nossos sentimentos. Após a matinal comunhão do libidinal, sentam para comer o desjejum, e uma cerca caída, no quintal da casa, é o pontapé inicial para a fúria do protagonista; como se tivesse tomado tantas doses de fúria, tantos copos de cólera, que tivesse deixado de ser quem era; ou, do contrário, tornado-se mais ele.
E o que começa como uma simples briga, com um trivial motivo, um supérfluo motivo de fúria, se transmuta em uma discussão de caráter bíblico, onde cada um dos participantes, ao final, não mais se lembram do pontapé que os levou até o ponto presente; é interessante como parece que estão a despejar tudo que, no fundo, gostariam de dizer um para o outro, mas que a perenidade do dia-a-dia os impede; e, mudando da água para o vinho, todas as características de um começam a incomodar o outro; reclamações dos trejeitos se misturam as de cunho politico, que se misturam a tudo que a cólera traz a tona.
Por mais que curta, a novela é uma grande aula do que é o gênero humano, - como todos os escritos de Raduan Nassar. Creio ser uma boa porta de entrada para o autor.
Favoritado.