Erick 20/12/2020os labirintos do desejo Nesse segundo volume de seus Seminários, Lacan ainda não formulou em todos os pormenores a tríade Imaginário-Simbólico-Real. De fato, a questão do eu está efetivamente vinculada ao imaginário em suas clivagens em relação ao simbólico e ao real. No entanto, ao menos desde o Discurso de Roma em 1953, já havia em sua fala e em seus escritos apontamentos relacionados a esses três registros.
O registro do imaginário vincula-se a intersubjetividade das relações entre eu-outro (com minúscula) nas suas relações mais imediatas de demanda (obviamente as demandas subjetivas, o estágio do ‘pedir’). O simbólico é o campo do desejo no seu aspecto inconsciente, uma vez que o conjunto dos símbolos, dos significantes e tudo aquilo que nos precede enquanto subjetividade está investido de relações de desejo e de inconsciência – não estamos totalmente conscientes da potência significativa e desiderativa da palavra e seus avatares da ordem simbólica. O real é o âmbito do gozo e dos termos de sua impossibilidade, tendo em vista os intrincados liames de contingência e necessidade que nos conectam aos objetos obscuros de nosso desejo e de nossas fantasias.
A questão da subjetividade – o eu enquanto aparição imaginária que podemos identificar mitologicamente com o momento da infância e de nossa inserção no mundo dos significantes – é abordada através do emaranhamento desses três registros. A criança é mítica porque ela é falada antes que fale por si, antes que consiga narrar-se na esfera das identificações imaginárias. Ao nascer, a criança torna-se um pedaço de carne clivado pelas tensões do simbólico: ela é inserida num universo cultural e linguístico ao qual subordina-se, submete-se, assujeita-se. É por isso que o sujeito é sempre efeito da cadeia significante e nela revelam-se as obscuridades do desejo.
Entretanto, a relação é com a Mãe, ou a posição do tesouro dos significantes, o grande Outro. É uma relação tensa pois ambos estão perdidos – a Mãe também já foi uma criança subordinada às leis simbólicas e está tão perdida quanto a criança nesse processo de subjetivação. Ninguém, de fato, tem controle nenhum sobre esse teatro. Ao entrar nesse vínculo com a Mãe, a família e a linguagem, a criança torna-se sujeito barrado ($), pois marcado ontologicamente pela falta-a-ser. O estágio do espelho revela o momento em que o indivíduo distingue o objeto que é da imagem que tem de si – esse descompasso entre o eu-ideal e o Ideal-de-eu marcará todas nossas relações, uma vez que tem a ver com a noção de autoridade que temos (metáfora paterna) e a representação que fazemos de nós mesmos através de nossas identificações.
Essa relação especular-projetiva entre o eu e o outro é marcada pela demanda, tudo aquilo que peço ao outro visando satisfazer meus impulsos imaginários – para Lacan, a demanda é o âmbito da afetividade, pois toda demanda, independente do que demandamos, é sempre uma demanda por afeto. A demanda é este aspecto mais externo do discurso e da reciprocidade, ou seja, o desejo por reconhecimento. Toda subjetividade quer, antes de mais nada, ser reconhecida enquanto tal: apenas dessa forma ela poderá realizar essa dialética que vai do desejo por reconhecimento para o reconhecimento do Desejo, a assunção de que, ela própria é um objeto de desejo.
Quando essa dialética inicial não ocorre, aparecem os sintomas, que são efeitos metonímicos desses fracassos afetivos. Nunca somos amados como desejaríamos sê-lo e por quem gostaríamos que fôssemos (eis a raiz das neuroses). Há sempre uma inadequação que nos faz sofrer. Sintoma, portanto, é sempre esse déficit de significação que nos marca. Esse descompasso entre o significante e o significado é onde reside a barragem de nossa subjetividade ($). De um significante ao outro (de s1 para s2), no seu encadeamento, o sujeito é o que desliza e condensa, inconsciente portanto de seu descentramento fundamental e de suas volições mais imediatas na ordem das demandas e satisfações.
A subversão lacaniana reside exatamente nessa dialética entre saber e verdade, pois onde sei (Cogito) não estou, ao menos significativamente. A verdade do sujeito é o seu desejo, embora dele esteja inconsciente, quer dizer, numa relação de não-saber, de desconhecimento do vínculo entre seu desejo e o desejo do Outro. Há uma ilusão de que podemos transferir a essência de nossos desejos para objetos – corpos e representações tornam-se suportes dessa realização. No entanto, a frustração decorrente da insatisfação nos demonstra a inadequação desta transferência. O desejo do Outro significa que o desejo não se reduz a um objeto, mas é a própria articulação do sujeito na sua relação com suas fantasias. Nesse sentido, a fantasia torna-se o liame entre o desejo e seu objeto (expresso na teoria lacaniana como objeto a - petit a).
O sujeito descentrado apenas toca sutilmente o seu desejo através de suas fantasias, quer dizer, através das representações que ele tem de si e os modos como ele goza de seu objeto perdido. O circuito que vai do desejo à fantasia, desta ao objeto a (causa do desejo) e deste ao gozo (mais-prazer, a mais-valia lacaniana) revela que a travessia da fantasia significa uma espécie de descoberta do núcleo subjetivo, ou melhor, o porquê (sentido) gozamos específicos e determinados objetos. Fantasiar uma coisa diz muito sobre nossa subjetividade – esse eu imaginário que identifica-se com objetos obscuros –, sobre as modalidades de nossas satisfações imaginárias e o uso dos prazeres. O gozo é o Real do sujeito justamente porque está para-além da demanda (imaginária) e do prazer (simbólico) e articula suas fantasias e suas conexões de objeto, revelando os desejos mais íntimos.
A pergunta “que deseja?” é tão acachapante porque insistimos em alienarmo-nos na demanda, em pedidos circulares que nada nos dizem nem sobre nós nem sobre eles. Ela é sempre marcada por um “não é isso” - segundo a fórmula clássica da demanda “te peço que recuses o que te ofereço pois não é isso” . Estamos sempre nos articulando na demanda, o que só comprova como o ego é a estrutura basilar do imaginário. A proporção é diretamente inversa entre o eu e o mundo (eis a alienação): quanto maior o eu – o universo egóico – menor o mundo: o interesse pelo mundo objetivo de pessoas, instituições, símbolos e desejos… e quanto maior o mundo – esse universo do real – menor esse eu-imaginário, que apenas circula de demanda em demanda para concluir “não é isso!”. O desejo tem a estrutura da metáfora (da ficção) justamente porque é irredutível a proposições lógicas e a definições geométricas. É necessário elaborá-lo, articulá-lo, interpretá-lo, deslizar em seus meandros, suas superfícies, seus abismo...