Paulo Silas 25/03/2018
Kelsen constrói em sua “Teoria Pura do Direito” todo um raciocínio científico que enseja na situação do Direito enquanto algo que pode (e deve) ser analisado pela perspectiva da ciência jurídica, isto é, o Direito enquanto algo autônomo – fundador e gerador de sua própria condição, de sua existência, de sua validade – esta que remete à norma fundamental que fundacional e ampara o Direito enquanto tal.
Diferentemente da causalidade que regula o mundo natural (ação e reação; consequências naturais), o contexto jurídico se estabelece por relações de inferências, ou seja, é o fenômeno da imputação que faz com que o Direito assim o seja. É pela relação “ser” e “dever-ser” que o Direito se estabelece, uma vez que a implicação de uma sanção ante ao não atendimento da expectativa de uma norma (jurídica) é condição de possibilidade para esse plano da ciência jurídica.
No decorrer da obra, Kelsen analisa o Direito e a natureza, o Direito e a moral, o Direito e a ciência, a estática jurídica, a dinâmica jurídica, o Direito e o Estado, o Estado e o Direito Internacional e, finalmente, a interpretação.
São esses alguns pontos de destaque na abordagem do autor:
“Quando a si própria se designa como “pura” teoria do direito, isso significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos” (p. 1)
Logo no início da obra, Kelsen estabelece o enfoque de sua teoria, a qual visa eliminar os fatores que não se situam no âmbito do Direito enquanto tal – daí a necessidade de se estabelecer uma ciência do direito a fim de que essa análise seja possível.
________________________
“A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa” (p. 4)
A conduta que é tida como relevante para o Direito, portanto, jurídica, assim o é através de um juízo interpretativo específico que visa situar dada conduta no âmbito da norma jurídica.
________________________
“[...] o conteúdo de um acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida” (p. 5)
O reiterar de Kelsen que os fenômenos que importam para o Direito devem coincidir com aquilo que no âmbito normativo se considera válido, portanto, pertencente à norma jurídica, uma vez que o Direito contempla o ato/fenômeno/conduta.
________________________
“”Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. [...] Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é o ser.” (p. 6)
Aqui Kelsen estabelece que a conduta que se entende relevante para o Direito para a ser assim considerada (enquanto norma) a partir de quando prescrita normativamente. O dever-ser se constitui enquanto norma, constituindo ainda aquele sentido que assim se dá pelo ato de vontade que é o ser.
________________________
“[...] a situação fática do costume transforma-se numa vontade coletiva cujo sentido subjetivo é um dever-ser. Porém, o sentido subjetivo dos atos constitutivos do costume apenas pode ser interpretado como norma objetivamente válida se o costume é assumido como fato produtor de normas por uma norma superior” (p. 10)
Kelsen expõe desde logo que nem toda norma é uma norma jurídica, uma vez que para que assim seja é necessário que seja observado o fato produtor de normas tida como válida juridicamente.
________________________
“[...] uma norma não é verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida” (p. 21)
Afasta-se aqui juízos subjetivos que podem se estabelecer por meio da Moral, da ideologia ou de quaisquer outros fatores que não jurídicos e que acabam por minar o campo ocupado pelo Direito. É daí que se diz que eventual contrariedade que se faça necessária apontar para determinada norma deve resultar numa ponderação entre validade e invalidade, jamais no campo do verdadeiro ou falso – uma vez que nesse caso estar-se-ia fugindo do campo de análise da ciência jurídica.
________________________
“Uma ordem normativa que estatui atos de coerção como reação contra uma determinada conduta humana é uma ordem coercitiva. Mas os atos de coerção podem ser estatuídos – e é este o caso da ordem jurídica [...] – não são como sanção, isto é, como reação contra uma determinada conduta humana, mas também como reação contra situações de fato socialmente indesejáveis que não representam conduta humana e, por isso, não podem ser consideradas como proibidas” (p. 28)
Kelsen diferencia aqui a reação tida como juridicamente válida, isto é, que pode assim ser entendida (coerção resultante de uma reação contra determinada conduta não aceita) somente quando devidamente assim prevista por uma ordem jurídica, ou seja, a proibição normativa somente pode alcançar situações que ensejem reações contra condutas humanas.
________________________
“Com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como “Direito”, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana. Uma “ordem” é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas teremos o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é [...] uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem” (p. 33)
A norma somente será jurídica quando se situar no âmbito de uma dada ordem jurídica. Além disso, o que configura a sua validade é algo que advém da norma fundamental dessa mesma ordem jurídica.
________________________
“Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas – particularmente contra condutas humanas indesejáveis – como um ato de coação, isto é, como um mal – como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessária empregando até a força física – coativamente, portanto.” (p. 35)
O estabelecimento da coerção como característica essencial do Direito. Vale pontuar que isso por si só não serve para caracterizar aquele Direito observado por Kelsen, pois ordens normativas morais, por exemplo, também podem ensejar em punições que não estatuídas por uma ordem jurídica.
________________________
“Uma norma, para ser interpretada objetivamente como uma norma jurídica, tem de ser o sentido subjetivo de um ato posto por este processo – pelo processo conforme a norma fundamental – e tem de estatuir um ato de coação ou estar em essencial ligação com uma norma que o estatua ” (p. 56)
Além da coação como característica da norma jurídica, para que assim o seja, deve também estar fundamentada o seu estatuir em uma norma anterior que a defina/possibilite.
________________________
“Se o Direito não fosse definido como ordem de coação mas apenas como ordem posta em conformidade com a norma fundamental e esta fosse formulada com o sentido de que as pessoas se devem conduzir, nas condições fixadas pela primeira Constituição histórica, tal como esta mesma Constituição determina, então poderiam existir normas jurídicas desprovidas de sanção, isto é, normas jurídicas que, sob determinados pressupostos, prescrevessem uma determinada conduta humana, sem que uma outra norma estatuísse uma sanção para a hipótese de a primeira não ser respeita. Nesta hipótese, o sentido subjetivo de um ato posto em conformidade com a norma fundamental – sentido esse que não é uma norma nem pode ser posto em relação como uma norma – seria juridicamente irrelevante. Nesta hipótese ainda, uma norma posta pelo legislador constitucional que prescrevesse uma determinada conduta humana sem ligar a conduta oposta pelo ato coercitivo – a título de sanção – só poderia ser distinguida de uma norma moral pela sua origem, e uma norma jurídica produzida pela via consuetudinária nem sequer poderia ser distinguida de uma norma de moral também produzida consuetudinariamente” (p. 59)
Kelsen apresenta aqui a ilogicidade de uma ordem posta sem coação (desprovida de sanção em caso de inobervância),uma vez que determinada previsão normativa sem caráter coercitivo acabaria por se tratar de ordem normativa irrelevante – podendo inclusive ser indistinguível de normas que não jurídicas.
________________________
“Por isso o Direito, ainda por esta razão, não tem caráter exclusivamente prescritivo ou imperativista. Visto que uma ordem jurídica é uma ordem de coação no sentido de que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposições enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurídica) devem ser aplicados certos atos de coerção (determinados igualmente pela ordem jurídica)” (p. 64-65)
Novamente, a necessidade de se observar o Direito como um conjunto de fatores que o constituem enquanto tal – aqui frisando a necessidade de atos de coerção para que haja a devida observância normativa jurídica.
________________________
“Se supusermos que o Direito é, por sua essência, moral (tem caráter moral), então não faz qualquer sentido a exigência – feita sobre o pressuposto da existência de um valor moral absoluto – de que o Direito deve ser moral.” (p. 75)
O Direito se constitui a partir de certa Moral. Mas isso não significa que o Direito seja Moral. Falar em Direito enquanto Moral ensejaria na aceitabilidade de uma única Moral existente na qual teriam de todo e qualquer sistema normativo jurídico a partir de tal se fundar, resultando num único Direito – o que não faz sentido algum justamente diante da ausência desse critério objetivo de uma única Moral.
________________________
“[...] a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral.” (p. 76)
Reiterando o ponto acima exposto, aqui Kelsen faz a controvertida (diz-se aqui enquanto complexa e pouco compreendida) separação entre Direito e Moral. A ordem jurídica assim é quer esteja ou não alinhada com a Moral.
________________________
“A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever. ” (p. 77)
Outro aspecto controvertido da teoria de Kelsen, cujas discussões resultam em grande parte de sua incompreensão. O Direito aqui é tratado enquanto objeto da ciência jurídica. Cabe à Ciência jurídica analisar e descrever o seu objeto- que independe da Moral.
________________________
“Se a ordem moral não prescrevesse a obediência à ordem jurídica em todas as circunstâncias e, portanto, existe a possibilidade de uma contradição entre a Moral e ordem jurídica, então a exigência de separar o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que a validade das normas jurídicas positivas não dependem do fato de corresponderem à ordem moral, que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito positivo, uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral” (p. 77)
Novamente um reforço das questões expostas acima. O Direito enquanto posto independe da Moral. A Moral é válida apenas quando do momento da instituição do Direito enquanto posto positivamente. Um não corresponde ao outro. A norma jurídica é válida independente do que diga a Moral.
________________________
“A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, Moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela é a sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade” (p. 78)
Kelsen se mantém firme na rejeição, pela Teoria Pura do Direito, do que diga a Moral acerca do suposto acerto ou desacerto do Direito.
________________________
“Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas” (p. 79)
O Direito é o objeto da ciência jurídica. Nisso está também presente o fato de que as normas jurídicas também constituem o objeto da ciência jurídica- importando as condutas humanas tão somente quanto relevantes (prescritas normativamente na seara jurídica) para o Direito.
________________________
“É esta relação – e não qualquer outra – que é expressa na palavra “dever-ser”, sempre que esta é usada numa lei moral ou jurídica” (p. 101)
A relação normativa (imputação) diferente a relação natural (causal). O “dever-ser” constitui a implicação por inferência da qual se vale a ordem jurídica.
________________________
“A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e a mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum” (p. 217)
A norma fundamental é a base que constituo todo o Direito – seu sistema jurídico-normativo, seu caráter coercitivo, seu estabelecimento estatal...
________________________
“Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta” (p. 221)
A validade normativa se dá a partir de sua própria constituição - desde que se baseie na norma fundamental, amparando-se nessa enquanto pressuposta.
________________________
“A eficácia é uma condição da validade, mas não é esta mesma validade” (p. 238)
A eficácia da norma jurídica não constitui, por si só, sua própria validade – mas é uma condição desta.
________________________
“[...] a suposição de que uma teoria do Direito natural poderia dar uma resposta incondicional a questão fundamental da validade do Direito positivo se baseia sobre uma ilusão” (p. 245)
Uma crítica de Kelsen contra o Direito natural.
________________________
“O problema do Estado como uma pessoa jurídica, isto é, como sujeito agente e sujeito de deveres e direitos é, no essencial, o mesmo problema que se põe para a corporação como pessoa jurídica” (p. 321)
Kelsen apresenta que a problemática na constituição do Estado se assemelha ao instituto da pessoa jurídica.
________________________
“Uma vez reconhecido que o Estado, como ordem de conduta humana, é uma ordem de coação relativamente centralizada, e que o Estado como pessoa jurídica é a personificação desta ordem coerciva, desaparece o dualismo de Estado e Direito como uma daquelas duplicações que têm a sua origem no fato de o conhecimento hispostasiar a unidade (e uma tal expressão de unidade é o conceito de pessoa), por ele mesmo constituída, do seu objeto” (p. 352)
Combate de Kelsen à dicotomia ‘Estado’ e ‘Direito’ – são um só. Supera-se, assim, o dualismo Estado-Direito.
________________________
“O Direito internacional é - de acordo com a habitual determinação do seu conceito - um complexo de normas que regulam a conduta recíproca dos Estados - que são os sujeitos específicos do Direito internacional” (p. 355)
Os Estados, em suas condutas, seriam regulados de acordo com o complexo de normas estatuídas pelo Direito internacional.
________________________
“A interpretação é [...] uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. [...]” (p. 387)
Kelsen estabelece uma interpretação do Direito por um viés dedutivo.
________________________
“[...] a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. [...]” (p. 390-391)
Kelsen não estabelece nenhuma “única resposta correta” a ser dada pelo Direito (interpretação autêntica), reconhecendo, assim, que a resposta dada será tida como Direito quando de sua aplicação (na norma jurídica individual).