Alex 11/07/2021Os vilõesSentirei saudade das conspirações no Louvre, da aflição de cada carta recebida, das tabernas e das estalagens, mas principalmente da amizade e comicidade dos mosqueteiros do Rei. Dumas me fez ler 788 páginas em 7 dias. A leitura é fluída, gostosa, e o roteiro sabe muito bem a hora de alternar o arco, de revelar ou esconder um assunto ou personagem que, mesmo sendo vários, são bem construídos e cativantes.
Curiosamente os personagens que mais me chamaram atenção não foram Athos, Porthos, D’Aramis e nem D’Artagnan, mas dois vilões: primeiro o famoso Cardeal Richelieu, Sua Eminência: com aparições pontuais, mas que causam enorme tensão e que, a depender do rumo do diálogo, pode-se mudar o rumo da história. Aliás não se sabe ao certo suas verdadeiras motivações e suas decisões são totalmente imprevisíveis, o que o tornam tão interessante para o romance. O outro personagem interessante se trata de uma vilã. Dumas não lhe dá um único lampejo de comiseração: é pura vileza, exprimida por uma raiva bestial, animalesca, movida apenas por ódio e sede de vingança. Não hesita em trair, seduzir, ou matar parar cumprir seus propósitos. Mas depois me questionei que até os vilões masculinos como o Conde de Rochefort e o Cardeal Richelieu possuíam tons cinzas, mas ela não. Então busquei possíveis motivações e a mais plausível está em sua própria história, marcada a ferro e fogo por uma sociedade falocêntrica (espada), extremamente cruel com mulheres (da aia à Rainha) e, nessa ordem estabelecida, nossa vilã é um ponto fora da curva: é uma mulher de ação, conquistadora, perigosa, zomba da religião, não se importa com matrimônio, e não tem medo de enfrentar homens armados, chegando em um nível que o próprio Cardeal, o homem mais poderoso da França, tem medo dela, e um pequeno exército de homens se mobilizar em seu encalço. Tudo isso deveria ferir o moralismo da época (1844) - desconfio que para a atual também, com essa onda conservadora - então é possível que Dumas, para não escandalizar, ou mesmo porque era moralista, não tenha tido a opção de dar uma faceta mais benévola para a personagem, sob possibilidade de ser acusado de aquiescer com tais sacrilégios. Ele porém, sempre tão conciso na narrativa, dedica várias páginas à versão da história da vilã, contada por ela própria, mas com mentiras óbvias, e algumas outras à versão narrada por um cavalheiro que, a princípio é sincero, mas tem uma moral bem peculiar e uma visão de mundo parcial. Resta talvez ao leitor escolher.
Enfim, Os Três Mosqueteiros pode parecer apenas um romance histórico, mas como bom clássico espelha questões atuais, sobre por exemplo como uma pequena aristocracia hipócrita e irracional decide o destino de homens e nações por conta de paixões pessoais, orgulho e loucura. Há também a polarização política, em que as pessoas se mantêm discretas enquanto tentam descobrir se o vizinho é realista ou cardinalista, católico ou protestante. Mas é preciso também ler o livro com a cabeça da época, seja a que Dumas o escreveu (1844) ou a em que o romance se passa (1626), pois será natural um choque de costumes, por exemplo (i) os criados que são tratados como uma raça inferior (esbofeteados, impedidos de falar, comem as sobras...); (ii) mulheres sofrem castigos severos e praticamente são indefesas sem a tutela de um homem ou da Igreja; (iii) homens que duelam e se matam como se fosse um passeio no parque; (iv) a determinação para se matar compatriotas a princípio por uma divergência teológica (o cerco de La Rochelle matou quase 30 mil huguenotes, a noite de São Bartolomeu, uns 50 anos antes, outros milhares); e etc.
Pra fechar, a edição da Zahar como sempre está impecável e para essa coleção de clássicos vale a pena comprar o físico.