Batata 13/10/2015
A vida que eu sempre desejei a ele, eu não propiciei a mim mesma.
Felipe desapareceu quando tinha de 5 anos, iria fazer 6. Ângela repetia essas palavras com um fulgor não para os outros, mas para si mesma. Ela passou os melhores cinco anos da sua vida, quase seis, e isso foi arrancado dela no dia em que Felipe desapareceu naquela galeria.
Ela faz questão de lembrar e citar a cada ano, o quão foi feliz com seu filho. Mas essas se tornaram lembranças manchadas com a ausência dele. As recordações que tem dele agora são memórias vazias, aquela alegria agora é lembrada com sofreguidão e tristeza. Tiveram tão pouco, mas este pouco, era tudo o que tiveram.
Todo aquele colorido de emoções que um filho trazia a uma casa e a família, deu lugar a sombras plantadas em lugares estratégicos da casa. Em cada móvel esquecido, em cada parede restaurada, na fachada da casa mantida do mesmo jeito por trinta anos, estava explícito o oco. Por 30 anos mantiveram tudo o que era material do mesmo jeito, com a esperança de que o doce menino voltasse, e encontrasse tudinho do jeito que deixara. Desde o quarto do menino até o chão da casa e os taquinhos da garagem.
Ângela não queria acreditar que perdera seu garoto, por todo esse tempo ela esperava que ele voltasse, do mesmo modo que desaparecera, repentinamente. Mas não esperava tendo em mente que ele poderia estar mudado, que ele já era um homem feito, que poderia até já ter filhos. Ansiava que aquele que voltasse era apenas uma versão maior do seu garotinho.
Quando ela percebeu que aquele garoto que esperava, não era o mesmo que Felipe poderia ser. Seu mundo caiu. Conviver com a ideia de que seu filho estava desaparecido a tanto tempo já era torturante. Constatar que ele pudesse voltar, com traços tão duros e maduros foi demasiado violento.
A mãe anulou parte de sua vida em função do desaparecimento do filho. Esperando que ele pudesse voltar a qualquer momento, ela esperou por ele. Fez tudo o que estava em seu alcance para ter seu filho novamente em seus braços. Foi à TV, e teve um grande destaque, ainda mais em uma época em que não existiam casos de desaparecimentos de crianças. Até mesmo a polícia não sabia como lidar com essa ocorrência.
Aqui está presente uma crítica tanto a polícia que ainda hoje não está preparada para lidar com esses casos, como para aqueles que são intitulados seguranças. Estes, que tratam esses casos como se fosse apenas uma rebeldia da criança. E muitas vezes, se recusam a procurá-la dependendo da sua raça, sua cor, ou classe social. Os seguranças não são treinados de acordo com o procedimento padrão e muitas vezes sequer sabem que ele existe. Quantos das famílias poderiam ser poupadas da dor de perder um ente se não fosse pela incompetência e incapacidade de alguns?
Ângela se culpava por justo naquele dia ter soltado a pequena mão de seu filho. Se sentia responsável por ele ter se perdido de seu lar, ou de ter sido roubado, sequestrado. Ela nunca poderia saber como isso aconteceu, se ele foi levado dentro da galeria, se ele estava fora dela, se ele rumou para a rua e se perdeu ou foi encontrado. Ela nunca saberia se ele viveu uma vida normal, se foi trancafiado em um quarto escuro, se foi abusado ou violentado como ela viu em tantos corpos diante dela, a fim de fazer o reconhecimento. Nenhum deles era Felipe. Nenhum deles era seu filho, a não ser de outra pessoa, de outra mãe, que também sofre até hoje por não ter conseguido uma resposta.
Diante da perda, logo no ínicio Ângela foi convidada para fazer parte de um movimento de mães que buscam por seus filhos. Depois de todos esses anos, ela era o maior exemplo de mãe, após 30 anos, ainda esperava, após 30 anos, ela nunca desistiu de seu filho.
Em Rebentar, somos apresentados a uma mãe em conflito com seus sentimentos. Todo esse tempo, Ângela anulou sua vida em função da ausência do filho. Ela queria se libertar do sentimento de estar presa ao vazio, presa a sombra da ausência do seu filho, ao oco que ficou em seu cerne.
Ângela preservou o quarto do filho intocado, não com esperança de que Felipe voltasse para ele, e sim para que em seu íntimo, ela soubesse que ele realmente existiu. Era aquele quarto que afirma que ela não estava enlouquecendo.
Mas com todos esses pensamentos, ela se vê em uma difícil decisão. Um rebentar de ondas de um mar revolto. Envolto em lágrimas salgadas e gritos sufocados. Ela teria que passar diante de si mesma, então, diante da sociedade que a olhava com escárnio por ter sido tão covarde ao querer renunciar a esperança pela volta de seu filho.
É impressionante como os gestos passaram a ser comedidos, as reuniões de famílias evitadas, tudo pela frívola ausência daquele que tanto preenchia a casa. Rafael Gallo nos rebenta com reflexões, eclode sentimentos antes profundos ao leitor. A linguagem que o autor usa é de uma venustidade que fragmenta nosso coração a cada sístole e diástole, nos deixa a respiração entrecortada diante de choros convulsivos da mãe (e do leitor).
Rebentar fragmenta, quebra, rompe, germina, deflagra, enrubesce, estoura, força nossas entranhas. É no âmago que nos afogamos diante de um rebentar de ondas cada vez mais alto. Esse livro abrasa nossa raiva, converte mina em vulcão.
Confira a resenha na íntegra com imagens do livro e citações no blog O Casulo das Letras.
site: http://ocasulodasletras.blogspot.com.br/2015/10/resenha-rebentar-rafael-gallo.html