Steph.Mostav 16/01/2022Os infortúnios da virtude e as prosperidades do vício[TW: estupro, pedofilia, tortura]
Com sua obra, Sade combate o idealismo sentimental de boa parte dos romances de seu século através da paródia. Suas críticas atingem em cheio a sociedade da época, principalmente através dos personagens virtuosos, que sempre sofrem nas mãos dos libertinos como suas vítimas. Assim como o prazer desses libertinos se dá através do sofrimento dos virtuosos, valores como virtude, sensibilidade e boa moralidade são sempre atacados em discursos nos quais as vítimas ocupam o lugar do "outro" e o discurso preponderante é sempre dos algozes, os libertinos.
"De modo geral, ocorre o seguinte nos romances de Sade: contam-se duas histórias paralelas (e complementares) que se cruzam, se entremeiam: a dos infortúnios da virtude e a das prosperidades do vício."
Eugénie, a protagonista do livro, é educada segundo os valores de todo bom libertino por seus preceptores e passa por um arco de corrupção ao longo do livro para tornar-se um modelo segundo o que Sade considera uma pessoa fiel à própria natureza, que não distingue as boas das más ações. Para isso, deve eliminar tudo que se interpõe entre ela e sua felicidade, que para Sade é a luxúria e a satisfação carnal.
"Nesse sentido, o que se vê em A filosofia na alcova é uma educação pelo avesso. Uma “deseducação” em que os costumes e a religião são desqualificados de suas funções seculares de tornar os indivíduos felizes. Não conseguiram, pensa Sade. Jamais conseguirão porque seus princípios estão assentados em bases falsas. Deus não existe e a virtude é uma quimera."
Não é para menos que essa educação sexual e filosófica, além de política, ocorre na alcova, localizada entre um ambiente de conversação, o salão, e o de amor, que é o quarto. Isso porque, além das peripécias sexuais do grupo, Eugénie também é ensinada dos valores morais que devem ser empregados pelos republicanos caso queiram que seu sistema político progrida e se mantenha.
"Para Sade, a consagração definitiva de um Estado revolucionário não é possível sem que a sociedade sofra uma radical transformação na qual a libertinagem dos costumes representa o principal motor. A moral, aqui, só faz sentido se orientar as ações humanas para uma felicidade que só se traduz pela prática das mais variadas formas de prazer e de crueldade, e pela realização de todas as fantasias do indivíduo."
O sistema sadiano depende do outro, o virtuoso, para que o libertino alcance a satisfação sexual e, portanto, a felicidade de acordo com sua noção de natureza. Quem visa o bem só alcança a alegria de maneira indireta, através do deleite do outro. Só quem manifesta seus relacionamentos através da crueldade egoísta pode alcançar o verdadeiro contentamento e é assim que se constrói a bipolaridade libertino/vítima.
"Tese central do pensamento materialista sadiano. Destruição em nome da transmutação ou do movimento perpétuo. O que autoriza a violência do libertino é, pois, um saber: uma filosofia da natureza. Assim, o assassino ajuda a natureza porque lhe fornece efetivamente a matéria-prima para as suas reconstruções. Prestando este “serviço” à natureza, ele participa ativamente da circulação geral das espécies no sentido de sua renovação energética. Nada se perde. Transmutação não é destruição."