Ana Sá 23/05/2023
Carta aberta a quem fica intimidada ou preguiçosa diante do número de páginas deste livro
Se você tem muita vontade de ler "Os Miseráveis", mas é sempre acometida pela síndrome de Macunaíma ("aiii que preguiça!"), esta resenha-carta é pra você! Demorei cerca de 1 ano e 7 meses para realizar a leitura, então vou usar do meu lugar de fala para dar um empurrãozinho em quem vive paquerando este clássico, mas tem resistido a marcar o primeiro encontro.
Eu não sei quanto tempo de intervalo de leitura determina a nossa desistência de um livro. Quero dizer: se, por exemplo, ficamos um mês sem retomar uma leitura, isso significa que desistimos dela?
Eu não tinha refletido sobre isso até ler "Os Miseráveis". Eu já encarei alguns livros "tijolo" nessa vida, mas neste caso o meu ritmo de leitura foi bem particular. Às vezes, eu lia umas 100 páginas na semana. Depois, ficava muitas semanas sem nem abrir o livro. Nesse intervalo de 1 ano e 7 meses eu acho que cheguei a ficar uns 2 meses sem me lembrar que, teoricamente, eu tinha iniciado um relacionamento sério com Victor Hugo (VH)...
... Mas não é que deu certo esse namoro a distância?
É este o meu ponto: a escrita de VH favorece essa leitura pausada, espaçada. Vou explicar: neste romance, ele investe muito no que eu chamaria de "escrita-zoom": ele inicialmente enquadra o todo para, aos poucos, ir se aproximando, se aproximando, para só então tratar daquilo que envolve determinada personagem. Por exemplo: imaginemos que uma personagem vai precisar pular um muro (e precisou mesmo!); VH vai começar do alto, de uma visão panorâmica do prédio, vai falar de arquitetura, vai falar da história de um determinado monumento afim etc... E... Zoom! Chega a cena da tal personagem pulando o tal muro que, nesse momento, será mais do que familiar para nós! A gente vai se sentir vencendo o muro junto com a personagem, sabendo a textura da parede, sua altura, os detalhes da construção (nas cenas de guerra essa estratégia narrativa funciona espetacularmente!)... Ou seja: pelo menos no meu caso, essa construção do macro pro mico, lenta, favorecia muito a costura da minha memória literária. São poucas personagens e muita ambientação, isso nos faz viver intensamente e em detalhes aquilo que acontece no livro. E por isso a leitura intervalada talvez não seja problemática... Quando eu voltava a VH, eu voltava sempre a um lugar muito familiar, então era fácil me situar outra vez.
Mas, sim, nem tudo são flores, né? Todo relacionamento tem problemas: por vezes, é preciso ter paciência com o estilo de escrita de VH. E, embora na esmagadora maioria das vezes sua escrita seja deliciosamente imersiva e hipnotizante, essa escrita-zoom quando se trata da política francesa, por exemplo, cansa um pouco. E como o autor inicia uma sequência narrativa quase sempre dessa visão mais ampla de algo que está por vir, a gente às vezes se pega pensando: "gente, mas por que esse homem tá falando disso?". É como se ele virasse e nos dissesse: "espera um pouquinho que eu já volto" e nos abandonasse por um tempo numa rua de Paris, bem distante das personagens que até então nos acompanhavam. Eu cheguei a rir sozinha no sofá pois juro que pensei: "o homem esqueceu da Cosette... sério, ele simplesmente esqueceu, ela desapareceu e vai reaparecer com 50 anos!!!". Mas não! Sempre chegava a hora em que eu exclamava: "ahhhhhhhh entendi! nossa, que safado, não é que ele conseguiu ligar tudo?". Ou seja, em algumas passagens parece que rola uma lenga-lenga, ou que ninguém virá nos buscar na escola, mas na verdade se trata apenas de um dos traços da genialidade do VH em conseguir juntar sempre vários fios num acontecimento só! Isso me impressionou muito!
O maior aprendizado que tirei dessa experiência foi o de perceber que a lentidão da leitura não necessariamente significa desinteresse. O modo como VH transforma Paris e todos os elementos urbanos em personagens é delicioso de acompanhar! As relações fraternais e amorosas do livro dão um quentinho no coração! Eu suspirei mais de uma vez... A forma como as descrições de VH transformam a nós, leitoras, em soldados no campo de batalha é inacreditável! É uma escrita muito sensorial, a gente afunda o pé na lama e desvia de golpes junto com os franceses! VH domina a arte do amor e da guerra... Seja na paixão ou no "tiro, porrada e bomba", ele tem o dom de nos colocar em cena! Então não, não foi nem desinteresse nem monotonia que me levaram a 1 ano e 7 meses de relacionamento com esse livro. Acho que simplesmente aprendi a aceitar o tempo que essa obra decidiu me impor.
Ninguém vai morrer se nunca chegar a ler "Os Miseráveis", mas hoje eu diria que morremos mais felizes se o tivermos feito! Por isso, a quem não tem cogitado abrir o livro apenas por causa do medo ou da preguiça de encarar tantas páginas, eu diria: "amiga, se joga nesse relacionamento a distância; você aqui, ele na França, uma ponte aérea de vez em quando pra matar a saudade, sem muito compromisso, vai dar bom! será eterno enquanto dure, mas depois será pra sempre!".
Minha leitura durou sim uma eternidade, mas agora ela é pra sempre... Que coisa bonita esse livro! :)